Deuses questionados na segunda cidade mais cool de África
Na segunda cidade mais cool de África, a cidade da Praia, a melhor notícia inicial foi a de esta passar a ser sede deste encontro anual a partir de agora. A pior deriva do tema deste VII Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, a da nova linguagem que as novas tecnologias promovem e a sua difícil harmonia com a "tradição" literária e jornalística. O debate, no entanto, teve um pequeno percalço na primeira sessão de trabalhos: é que alguns dos oradores não pertencentes à "classe" dos escritores referiam-se a estes algumas vezes como os "deuses" que justificavam o encontro e que não desejavam ser questionados pelas contranarrativas de outras linguagens. Nada que não fosse ultrapassado, mesmo que na primeira intervenção, a de Vera Duarte, esta explicasse que era do "jurássico" e não utiliza novas tecnologias. Na comunicação, referiu que a "herança redentora que o colonialismo nos deixou foi a língua portuguesa", um português polifónico e pluricêntrico de 300 milhões de pessoas conforme o país onde é falado. A terminar, avisou que "o digital e a televisão atraem a leitura e não deve haver uma relação conflituosa por parte da literatura".
Do mesmo lado, Ana Mafalda Leite considera que é a partir da internet que os novos escritores moçambicanos começam a poder publicar. "São novas cartografias que divulgam e autorrepresentam os jovens", diz, no seguimento de várias revistas literárias que foram abrindo e fechando naquele país. A partir de 2000 e durante quatro anos existiu a Maderazinco, uma revista online, que pretendia fazer chegar a literatura moçambicana ao mundo, seguindo-se outras iniciativas digitais. Delas resultaram um boom de autores e edições no país, criando um novo impulso literário. A mesma opinião, se bem que radicalizada pela sua apresentação, tem o jovem poeta/agricultor Rony Moreira, que referiu a internet como fonte de poesia e explicou como a utiliza para a sua obra através da criação de textos sobre imagens de lugares aonde nunca foi. Surpreendeu a plateia ao ler um poema sobre o Rio de Janeiro, escrito durante a própria sessão através de imagens observadas na internet. Como num evento destes não pode deixar de haver surpresas, coube ao poeta guineense Emílio Tavares Lima protagonizá-la ao começar por cantar uma morna em vez de iniciar o seu tema, Alta Definição Poética, em que defendeu o papel do poeta em tempos conturbados como os que se verificam no seu país. A volatilidade de memória atual, diz, pode ser substituída pelos novos suportes de leitura.
Antes fora a vez de especialistas em imagem. Os cineastas Rui Simões e Zezé Gamboa focaram-se na sua arte, tendo o primeiro falado do seu filme A Casa (dos Estudantes do Império) e a quem o filme pode interessar e o segundo explicado a relação entre a literatura e o cinema através das complicações da escrita do guião da sua longa-metragem, O Grande Kilapi. Diana Andringa contestou a frase "uma imagem vale por mil palavras" e defendeu a situação contrária, a de que uma "palavra pode valer mil imagens", fazendo um paralelo com a RTP pós-25 de Abril, em que a palavra-chave era o privilégio da imagem, e a evolução dos seus documentários em que pretende dar força à palavra escrita.
A primeira grande fratura no debate surgiu quando César Schofield Cardoso referiu o facto de estar sempre contra a opinião geral da cultura cabo-verdiana e dos estereótipos que se mantêm sobre o cidadão do seu país. Questionou o peso da literatura modernista no cinema de Cabo Verde e a ausência de um verdadeiro retrato dos habitantes, situação que nem a "torrente editorial" em curso desmistifica quando comparada com um projeto de filmes feitos por jovens através de telemóvel que "surpreenderam pelo que se deu a conhecer das pessoas". Deixou a pergunta: "E se o cinema e o vídeo não fossem uma ferramenta de marketing mas uma forma de compreender a nossa sociedade?"
Polémica foi também a intervenção de Fátima Bettencourt, pois, apesar de ser mais uma autora a assumir-se do jurássico no que respeita ao uso da tecnologia, alertou para o prejuízo que certas culturas podem sofrer face à revolução tecnológica por a sua língua não ter cabimento na internet conforme é falada. Considera que a própria língua portuguesa é adulterada e não cabe nos novos padrões de linguagem que dominam o mundo virtual, tendo daí partido para a questão: o que tem a literatura que ver com a tecnologia? "Tem tudo, pois falta ver até que ponto a mais-valia das mudanças não elimina uma língua se não a soubermos defender", disse, acrescentando que "se a leitura fez a distinção social em tempos, agora está-se a viver um momento de mudança em que é necessário que o autor seja fiel à tradição da literatura e não deixe desaparecer as características da sua língua".
Por outras palavras, o poeta brasileiro António Carlos Secchin comentou a má pujança da poesia na internet e a capacidade desta no armazenamento de uma memória que nem sempre cria a diferença entre informação e conhecimento. "A circulação de textos virtuais em grande quantidade para um leitor invisível torna difícil a leitura de alguns autores, bem como a possibilidade de se criar uma escrita diferente da escrita em papel", para finalizar com a premonição de que um dia "escrever-se-á uma história da literatura na internet". Também José Carlos Vasconcelos escolheu esta crise sobre os suportes ao desenvolver o tema "novos "meios", mas para os mesmos fins"...
Numa atitude disciplinadora do debate, o cineasta António-Pedro Vasconcelos falou da relação entre o romance e as novas tecnologias para afirmar que não há nada de novo na literatura desde Aristóteles. Quanto à adaptação de romances à TV ou ao cinema, considera que os grandes livros nunca deram grandes filmes porque têm uma voz própria e um ponto de vista intraduzível em cinema, visto que este é sempre ação e não aceita palavras que pretendam definir estados de alma.
O VII Encontro envolveu mais de 20 autores das principais cidades de língua portuguesa: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé. Na sessão de abertura, o secretário-geral da UCCLA, Vítor Ramalho, apontou a importância da influência das novas linguagens; o responsável cultural da mesma instituição, Rui Lourido, referiu a importância da expressão em língua portuguesa para que os escritores tenham um público muito mais alargado, enquanto o vereador da Cultura, Lopes da Silva, valorizou o evento para a população da ilha de Santiago e dos que vieram de outras ilhas, tendo o autarca Óscar Santos considerado que o evento coloca a cidade da Praia na agenda mundial da cultura. Foi ainda lançado o livro que reúne as intervenções da edição anterior, com 21 textos, e apresentado o mais recente prémio literário da UCCLA, vencido por Thiago Braga, com o romance Diário de Cão. Um autor que há muito tempo escreve mas nunca tinha publicado. "Um livro que tem um título enganador, pois não é um diário", esclareceu.
O jornalista viajou a convite da UCCLA