Destinos cruzados
Tinha escrito um texto sobre o Lucca, que ficará para a semana, mas no comboio para Lausana, à minha frente, em diagonal, eu no sentido da marcha, ela contra, vai uma jovem, roliça, de olhos cor de amêndoa, a estudar o guião dos Monólogos da Vagina. Tem cara de Lynn, de Caroline, mas não gosta de Caroline, nome que desde pequena, 6, 7 anos, não lhe assenta bem, como a maquilhagem que não usa ou o camisolão que traz. Lynn olha para o papel, as amêndoas grandes concentradas nas letras minúsculas, junta as folhas ao peito, disfarçado num camisolão, levanta a cabeça e os lábios mexem (no pun intended), calculo que a repetir o que acabou de ler. Não sei se é, porque não ouço, e as minhas qualidades de leitura labial em alemão - o guião é em alemão - já tiveram melhores dias. Irá para uma audição amadora? Será a melhor atriz suíça? As folhas estão arqueadas, lidas e relidas, treinadas. Com o polegar da mão direita marca o ritmo na parte de dentro da perna enquanto repete o que lê. Deve ser assim que se faz, que ensinam nas aulas de representação, nunca tive, mas devia.
Consigo ler melhor as folhas que dizem na capa, traduzindo, "guião oficial para o V-Day de 2019". Assim que a senhora mais velha sair daqui do meu lado - estamos num conjunto de quatro, dois a dois -, vou ver o que é isso do V-Day, mas vou esperar que ela saia, porque desde que lhe pedi para tirar a mala do lugar onde me sentei que está algo tensa e com cara de poucos diálogos, e olha-me aqui para o monitor, e tenho medo de que a pesquisa no Google abra imagens das ditas monologantes e a senhora me queira refrear chamando o guarda-freios.
Agora que pegou no Kindle, e se embrenhou numa leitura, consegui espreitar isso do V-Day, nunca tinha ouvido falar, mas parece que a Eve Ensler, a autora dos Monólogos, fez uma fundação que permite que no dia 14 de fevereiro - o V, além de vagina, de vitória, dá também para Valentim - a peça seja representada em ações de recolhas de fundos sem cobrar quaisquer direitos de autor. Mas o V é sobretudo o de um dia contra a violência contras as mulheres, que tem formas mais sanguinárias do que outras, dependendo do tempo e do lugar.
Em Davos, uma irlandesa que dirige o escritório em Bruxelas de uma grande tecnológica americana conta-me que num encontro só para mulheres de onde acabava de sair tinham feito vários avisos: para se hidratarem, para andarem sempre de botas e para não se sentirem mal se não tivessem as credenciais mais importantes (em Davos, fiquei a saber, há uma hierarquia cromática de passes). E terminou dizendo que as mulheres do passe branco deviam abeirar-se das de outras cores e falar com elas para elas não se sentirem tão mal. Ia agora por aqui fora sobre as mulheres em Davos e um evento da indústria de canábis onde eram menos de um por cento, mas a Lynn e a senhora do Kindle saíram e deram o lugar a duas divertidas africanas. Uma tem 13, outra 18. São angolanas. A mais nova pergunta à mais velha se há comboios em Angola. Que lhe perguntaram isso na escola e ela não sabia e ficou com vergonha de dizer que não sabia. A mais velha diz que acha que sim, que se lembra de ter andado em pequena, ainda eram os kwanzas antigos, foi com os pais para o Lubango. A mais nova ri-se dos preços dos bilhetes, do nome da moeda, chama-lhe velha. Riem-se. Estive para intervir, dizer que sim, que há, falar do desastre de há uns tempos. Mas não poderia ouvir mais a conversa, dos poucos prazeres.
A mais velha fala num dos telemóveis com o pai. Diz ao pai, sobre alguém, que é diferente uma pessoa que tem mulher, do que uma que está sozinha. Antes disso tinha dito à mais nova que estava triste. A mais nova sugeriu que falasse com aquele amigo que a põe feliz - aquele, sabes quem é. Riu-se, triste, não pode ser, ligar só para deixar de estar triste, não pode ser. O pai voltou a ligar, tinha-se enganado a dar o código da porta. Era 346. Disse mais qualquer coisa e ela respondeu: "É o destino, papá." Ficaram em silêncio, tive de sair, também tinha chegado ao destino.
Advogado