Contaminação é a palavra de ordem no Jazz em Agosto
A 34.ª edição do Jazz em Agosto, "o festival mais importante em Portugal" do género, segundo a trompetista Susana Santos Silva", rima com contaminação. "As linhas gerais são de contaminação. As contaminações das músicas à volta do jazz fazem as linguagens do jazz saltarem de tempos em tempos, desde os tempos de John Coltrane, Ornette Coleman, Charles Mingus, etc., desses grandes inovadores", comenta Rui Neves, o diretor artístico do festival que decorre a partir de amanhã na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
O concerto inaugural não podia deixar de ser um desses casos. O saxofonista Steve Lehman juntou um rapper senegalês, Gaston Bandimic, e outro norte-americano, HPrizm, dos Antipop Consortium. "Têm o espírito de hip-hop, mas não do hip-hop mais comum, é preciso conhecer o trabalho de um grupo como o Antipop Consortium. É mais alternativo, experimental, com uma atitude que inspira muito os músicos de jazz e que inspirou o Steve Lehman. Aí está um aspeto interessante da contaminação que pode ser o jazz ir beber outras músicas que estão à volta", diz Rui Neves. O concerto que encerra o Jazz em Agosto é outro caso. O trompetista Dave Douglas - "um camaleão do jazz, como se costumava dizer dos músicos do tempo do Herbie Hancock ou do Chick Corea" - exprime no disco Dark Territory uma "consciência política enorme". É um "seguidor do Noam Chomsky e tem uma consciência muito própria sobre o momento em que vivemos da ciberespionagem, da darknet, a manipulação da política, a espionagem industrial, os hackers, etc. Musicalmente pensemos na música do Miles Davis elétrico, do Jon Hassel, está nessa linhagem."
Entre o princípio e o fim, outras contaminações sugeridas por Rui Neves. Por exemplo, a do pedal steel guitar, instrumento usado na música country. Peter Brötzmann, "presença frequente em Portugal" criou um dueto com a texana Heather Leigh, cujo currículo inclui grupos underground folk e que toca pedal steel. "É uma relação mais harmoniosa, mas de uma intensidade fora de série. Sem dúvida que a Heather Leigh vai ser uma surpresa".
As referências ao passado podem ser vistas como outro tipo de contaminação. O Jazz em Agosto descarta o "jazz que se emula igualzinho ao passado", pelo que no caso do Starlite Motel, tendo referências ao passado, "tem um sentido de atualidade". Aqui a referência é o organista Larry Young que tocou no trio Lifetime, com Tony Williams e John McLaughlin, um som próprio do órgão Hammond B3 da primeira geração, "muito tórrido", trazido pelo teclista Jamie Saft. Outras formas de inspiração são encontradas pelo saxofonista Larry Ochs no quinteto The Fictive Five: o mundo do cinema, em especial cineastas como Wim Wenders ou Kelly Reichardt.
A participação portuguesa "reflete três gerações de músicos que optaram por uma linguagem de jazz não convencional": a geração mais nova, "num campo da improvisação mais radical", do saxofonista Pedro Sousa e do turntablist e manipulador de eletrónica Pedro Lopes. A mais veterana, do violinista Carlos Zíngaro com o Sudo Quartet, "improvisadores da primeira divisão da Europa". Música improvisada "válida, que tem uma coerência e uma linguagem própria". E é "o caso da Susana Santos Silva, que organizou um quinteto escandinavo, um grupo de grande mérito e interesse".
A viver em Estocolmo, Susana Santos Silva diz ao DN sentir "um grande prazer" em estrear-se no Jazz em Agosto. Para quem ainda não ouviu o seu conjunto, a própria define: "Posso dizer que a ideia que tive para este quinteto partiu do nome que dei à banda, Life and other Transient Storms. Escolhi músicos muito intensos, com muita energia, capazes de exprimir tanto espaços enérgicos e frenéticos como mais calmos e etéreos."
Em paralelo aos concertos vai ser lançado Life is a Simple Mess, um livro (acompanhado de um CD) de ilustrações de Travassos, artista gráfico (e músico jazz) ilustrador dos discos da Clean Feed. O livro conta com textos em inglês de Nate Wooley, trompetista dos Fictive Five, que atuam com o saxofonista Larry Ochs. O lançamento tem lugar depois do concerto, junto à banca de discos. "Uma coincidência feliz", segundo Rui Neves.