Remédios tem 80 anos e faz 4 horas de viagem por dia para ir ao tratamento

Os problemas de saúde de Remédios cruzam-se com as más condições da estrada que três vezes por semana atravessa entre Barrancos e Beja onde faz hemodiálise. Numa semana faz mais de 600 km. 26 101 alentejanos assinaram a petição Beja Merece+que exige ao poder central olhe para o abandono a que o Baixo Alentejo está votado. Denuncia a falta de condições das estradas, a ausência de uma autoestrada, de linha férrea eletrificada, subaproveitamento do aeroporto e pede melhores condições de saúde
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Cecílio Antero acaricia com as suas mãos calejadas a mão pálida da mulher. "Não é só quando somos novos, envelhecemos e temos que cuidar". Ele tem 83 anos cheios de vida e de humor; Remédios tem 80, é cega, a diabetes roubou-lhe a visão, é uma mulher doente. O marido trata dela, com a ajuda preciosa das filhas que limpam a casa e fazem a comida. Mas ele cuida, cuida muito dela. Três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas-feiras levanta-se antes das cinco da manhã e acompanha-a desde a sua casa em Barrancos até ao Hospital de Beja onde Remédios faz os tratamentos de hemodiálise. São mais de 600 quilómetros por semana, por uma estrada em péssimas condições - a capital de distrito fica a 102 quilómetros e o percurso leva quase duas horas - e como se não bastasse uma parte do traçado acidentado da estrada cheia de curvas e contracurvas, somam-se um piso irregular, aos saltinhos, e muitos buracos. Impróprio para idosos, doentes ou grávidas.

Há oito anos que a vida de Cecílio se resume a isto: faça sol ou faça chuva, levanta-se da cama, veste a mulher e espera pela carrinha dos Bombeiros Voluntários de Barrancos, que chega às seis da manhã. Às oito, ela começa o tratamento em Beja. Só por volta das três da tarde o casal está de regresso a casa. As filhas já deixaram a refeição pronta e Remédios vai ter que se deitar. "Vem muito moída com a viagem", conta Cecílio que se expressa num português misturado com o dialeto barranquenho.

Cecílio sabe que não pode ter um hospital às portas de casa, mas acha que no mínimo devia haver "uma estrada em condições, porque esta está uma porcaria". "Uma pessoa vai boa e regressa doente."

As más condições ou a falta de acessibilidades no distrito de Beja e a falta de equipamentos de saúde são, aliás, das principais reivindicações da petição com 26 101 assinaturas que o movimento Beja Merece + entregou na Assembleia da República a 10 de maio, numa iniciativa cultural que levou centenas de alentejanos a Lisboa.

Remédios sai de casa duas horas antes do tratamento para ir a uma cidade que fica a 102 km. Se fosse fazer um tratamento em Lisboa teria de sair quatro horas antes, explica o comandante dos Bombeiros de Barrancos, Carlos Pica. Que diz haver casos no Alentejo em que ambulâncias levam quatro ou cinco pessoa para o IPO de Lisboa. Resultado: os doentes têm de esperar uns pelos outros e acabam por regressar a casa às duas da manhã.

Francelino Domingues, 62 anos, reformado da GNR, andou a caminho do Hospital de Évora durante 33 dias seguidos para fazer radioterapia - hora e meia para percorrer os 107 km de distância, mas ainda assim menos do que se fosse até Beja. "As estradas são melhores. Se tivesse que ir até Beja levava mais tempo e o sofrimento era maior. Mesmo assim é melhor ir a Évora do que a Lisboa, como era dantes."

E indigna-se pela imparidade do investimento público: "Gastou-se milhões no aeroporto que não tem passageiros e não houve dinheiro para arranjar as estradas. Deem um jeito a isto, melhorem isto! Queríamos no mínimo uma estrada em condições."

A situação piora em casos graves: "Se vamos depressa, os doentes que vão atrás na ambulância queixam-se, se formos devagar a pessoa morre até chegarmos ao hospital", diz o comandante Pica.

Francelino dá voz ao sentimento de muita gente do Baixo Alentejo, ele que vive na raia, mais perto de uma localidade espanhola, Encinasola, do que de um povoado português: "Sinto-me abandonado como português, também pago os meus impostos. Sou português, sempre fui e quero ser. Mas que nos tratem com dignidade!"

Também ele tem noção absoluta da impossibilidade de ter um hospital a cada esquina, mas recusa-se a aceitar que uma estrada esteja anos e anos sem obras de recuperação. "Que fosse arranjada aos poucos, nem que fosse 10 km de cada vez. Depois, há muita curva que podia ser cortada."

Único distrito sem ressonância

Melhores condições de saúde é um dos pontos reivindicativos da petição. De acordo com Pedro Vasconcelos, presidente do conselho sub-regional da Ordem dos Médicos (OM) de Beja, Beja é o único distrito que não tem ressonância magnética. "Os doentes vão a Évora, mas é preciso ter em conta a dispersão demográfica deste distrito, que é muito grande." Diariamente cerca de uma dezena de pessoas desloca-se a Évora para fazer o exame.

A falta de equipamentos estende-se a outros serviços. Alguns exemplos: a maioria dos exames radiológicos é feita fora, na privada, devido à degradação dos equipamentos - só há um ecógrafo a funcionar, do conjunto de um mamógrafo e três ecógrafos. A situação, diz, agrava-se porque há dias em que não há radiologistas de urgência. TAC a funcionar intermitentemente, por avarias frequentes, embora esteja em vias de aquisição um novo aparelho, denuncia.

Na Urologia o panorama não é melhor, segundo a OM, com base em dados fornecidos pelos diretores de serviço há dois meses: a litotrícia está avariada desde dezembro e faltam de câmaras óticas para operar. Na oftalmologia, por exemplo, o aparelho de campos visuais e o único angiógrafo estão avariados e não existe AngioOCT, "equipamento de diagnóstico mandatório em qualquer serviço de oftalmologia atual".

Por tudo isto, Pedro Vasconcelos questiona-se: "Vale a pena envelhecer aqui?"

O que pedem os cidadãos e o que respondem os organismos responsáveis

SAÚDE
Reivindicação
A petição denuncia a falta de meios humanos e materiais e as instalações exíguas da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, sobretudo quando está prevista a criação de um hospital central em Évora. A Ordem dos Médicos denuncia a inexistência de ressonância magnética, bem como a degradação e falta de equipamento em vários serviços.

Resposta
O DN questionou a Administração Regional de Saúde do Alentejo mas não obteve resposta em tempo útil.

ACESSIBILIDADES
Reivindicação
A petição, os empresários e os agricultores exigem que sejam retomadas e concluídas as obras do IP8/A26, de forma a serem criadas condições para instalação de novas empresas e de fixação de população. Reivindicam a abertura do troço da A26 entre a A2 e a da Malhada Velha que está pronto mas continua sem abrir.

Resposta
O Ministério do Equipamento diz "que abertura ao tráfego do troço da A26 aguarda a conclusão das obras de ligação à praça de portagem da A2, da responsabilidade da concessionária, que está prevista para o segundo semestre de 2018.". Já sobre a construção da A26 até Ficalho diz que "de momento, a sua construção não está projeto. É de recordar que, por opção do anterior Governo nas negociações com a Comissão Europeia, os fundos europeus, através do Portugal 2020, não financiam estradas."

AEROPORTO
Reivindicação
O movimento de cidadãos Beja Merece+ pede na petição o total aproveitamento do aeroporto de Beja.

Resposta
A ANA-Aeroportos refere que a dinamização do espaço passou pela "assinatura de protocolos e licenças para instalação de um hangar da AERONEO e de um hangar da MESA, onde a empresa de manutenção em linha de aeronaves do grupo HiFly, irá desenvolver e expandir a sua atividade de manutenção de aeronaves. Todos os licenciamentos relativos aos projetos estão concluídos por parte da ANA, sendo que aguardamos as respetivas notificações para o início dos trabalhos de construção". Mais: a ANA "pretende igualmente consolidar o Aeroporto de Beja como plataforma de baseamento de companhias aéreas (estacionamento de média-longa duração)".

COMBOIOS
Reivindicação
A eletrificação do troço ferroviário Casa Branca-Beja-Funcheira, que permita ligações diretas a Lisboa e ao Algarve, é exigida pelos cidadãos de Beja.

Resposta
"A possibilidade de eletrificação deste troço vai ser avaliada no âmbito do próxima programação de investimentos (Portugal 2030)", diz o Ministério do Equipamento. E acrescenta: "No programa de aquisição de material circulante que está a preparar, a CP vai contemplar a compra de material bi-modo, ou seja, apto a circular, sem interrupções, em linhas eletrificadas e não eletrificadas, o que permitirá garantir padrões mais elevados de operação e conforto."

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