"A música que não fala à alma incomoda-me como um espinho"
O violoncelista é um conversador nato e um instrumentista cujo talento comunica em ligação direta à alma. O carioca veio de Nova Iorque, onde esteve a ensaiar com Ryuichi Sakamoto. Com o compositor e pianista japonês fará os concertos da inauguração da Casa do Japão, em São Paulo, dias 6 e 7 de maio. "Vamos reviver o Casa, para nossa alegria". Há 14 anos que não o tocavam, mas foi como se o tivessem feito na véspera: "Quando a gente ama a música ela fica no sangue".
Chamou o violoncelo de "meu filho"? (ao sentar-se para a entrevista pega no violoncelo e não o larga)
Ah, falei agora, mas às vezes falo "minha nega", ou "minha senhora" (risos)
Que relação é essa?
O violoncelo foi feito para mim, por encomenda. É um instrumento particular, tem cinco cordas, quando um normal tem quatro. É a realização de um sonho infantil. Só que no meu sonho de adolescente era usar uma corda mais aguda, porque eu comecei na música popular pelo rock e tocava com guitarras e saxofones e queria também tocar na região aguda para emparelhar com os outros solistas. Acabei por realizar o meu sonho, mas com uma corda mais grave. Sou ao mesmo tempo baixista e contrabaixista, o que supre as minhas aspirações como instrumentista. Fui apresentado a um luthier de Minas Gerais que aceitou fazer este instrumento. Levei uns 10 anos para me apresentar com ele pela primeira vez porque precisei de uma adaptação e de organizar a minha cabeça para me habituar a este instrumento, principalmente na questão da leitura.
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Consegue estar um dia sem tocar?
Consigo estar muitos dias. Pratico essa ausência desde sempre. Quando era garoto, no final do ano letivo, guardava o violoncelo no armário e só me encontrava com ele no ano seguinte, sempre com a impressão de que tocava melhor do que antes. E sempre me dediquei a muitos campos da música. Quando estou a escrever arranjos, estou semanas sem tocar no instrumento. Não é o ideal para quem se propõe ser um virtuoso, mas essa não é a minha proposta, que é mais direcionada para o lado da paixão e da inspiração do que da velocidade e dos fogos-de-artifício.
Albert Einstein dizia que sonhava acordado na música e que a alegria provinha do violino que tocava. Partilha?
Eu percebo, sim. Quando estou a caminhar e não tenho ninguém com quem falar, instintivamente começo a cantar e a criar uma nova canção. É uma espécie de meditação, eu me abstraio do resto do mundo e estabeleço uma relação puramente visual e espiritual. O que os meus olhos estão a ver eu acabo conectando com aquela música que surge dentro de mim. É uma maneira de meditar, de me esquecer dos problemas do mundo, da política do Brasil, e de estar feliz.
Como vê a atualidade do Brasil?
Com muita tristeza. A gente sempre espera o melhor do nosso país e quando se vê uma classe política inteira viciada, com as mãos sujas, perde-se a credibilidade e a esperança. Mas por outro lado vê-se criminosos do colarinho branco e grandes empresários sendo punidos. É um misto de desesperança com esperança.
Numa entrevista ao DN, em 2001, afirmou odiar a falta de integridade. A desonestidade também o incomoda na música?
Ah, com certeza. Interesso-me pela música sincera, profunda, do fundo da alma do ser humano e que se direciona ao fundo da alma do próximo. Gosto de música dançante e tudo, mas tem de existir verdade na música para ela ter razão de existir. Não me interessa música direcionada para ser vendável ou rentável. A música que não é boa incomoda-me. Entrar num táxi ou num uber e ouvir uma canção que não me fale à alma incomoda-me como um espinho ou uma doença.
E para quem sabe compor é muito simples de fazer.
É. Não tem mistério nenhum, é muito fácil perceber a natureza de cada música. Não importa qual o estilo, percebe-se quando é feita de coração.
Li que participou em 699 álbuns.
Agora a conta vai em 748. Quando comprei o primeiro computador deu-me essa vontade de pegar em todas as agendas antigas e anotar, como se fossem troféus. Se eu quiser impressionar alguém, posso falar em 2400 e tal concertos, em praticamente 400 cidades em 40 e tantos países e com tanta gente boa. A grande escola da música é a vida e os grandes mestres são os músicos com que você toca e absorve artes tão diversas. Por melhor que seja a academia, aprende-se muito mais na vida. Muitos músicos são autodidatas e vão criar coisas que ninguém vai aprender em escola alguma.
Mas também tem de agradecer aos pais, um maestro e uma professora de piano.
Isso. Mas no momento de transição entre a adolescência e a vida adulta tentaram convencer-me a não ser músico profissional. Quando larguei o curso de Economia no primeiro ano, eu já era um músico, na verdade. E o mesmo aconteceu com os meus irmãos, a minha mulher e a minha filha, Dora, que largou o segundo ano de arquitetura. Acabou de lançar um álbum com o grupo vocal Zanzibar.