Desobediência estatística. Não contam comigo
Enquanto não for incluída uma pergunta sobre questões étnico-raciais não responderei a nenhum Censos. Prendam-me, multem-me, ignorem-me, mas não contam comigo.
O facto de se discutir em Portugal, em 2019, se se pode ou se se deve incluir uma questão sobre a etnia (uso a palavra por simplicidade) das pessoas é dramático. Não fosse dramático, era só cómico. A coisa foi bem montada. Alguém embirrou com a questão - vá-se lá saber porquê - e preparavam-se para não a meter no Censos. O grupo de trabalho recomendou (e como se atreveu a isso é que não se percebe, porque um grupo de trabalho, já se sabe, é para dizer que algo não se pode fazer e dizer que tem de se estudar mais). Depois eram as pessoas, os portugueses, que não têm raça nem são racistas, e podiam sentir-se incomodadas e violentadas na sua intimidade constitucional pela pergunta (tentar não rir). Mas 84% da população disse, pasme-se, que responderia à questão se lhe fosse perguntada (o que está mal porque normalmente as pessoas respondem que não às questões nas sondagens e mandam o Estado passear com perguntas). Viria uma onda de clamor contra a pergunta? Excetuando dois ou três, já lá vamos, todo o espectro cromático político, étnico, social, racial veio dizer que sim, que tinha de se saber para conseguir resolver. Uns até ficaram incrédulos com a questão de a questão ainda se pôr.
Mas há quem não pense assim. Para o governo não é óbvio, nem para o INE. Numa primeira linha, tentou-se que a questão fosse enquadrada como um problema de independência do INE (tentar não rir). Sejamos honestos: o governo não pode impedir o INE de divulgar dados do desemprego, nem torturar os números para se conformarem com os seus desejos de crescimento económico, estamos (quase) todos de acordo - mas acaba aí a tal pretensa independência do INE. Como se o INE pudesse decidir uma questão tão fundamental só porque sim, porque não dá tempo, porque a questão da questão é complexa (sic) e devia ter sido pensada desde 2015 (sic, tentar não rir). Parece que os membros do INE que integraram o grupo de trabalho nunca disseram nada sobre as alegadas questões técnicas. Adiante.
Paralelamente com a independência do INE veio a defesa pelo ataque, o quem-diz-é-quem-é - quem é racista é quem diz que há raças, quem é racista é quem quer saber de que etnias somos, racista és tu que falaste em raças, racista eu disse primeiro, racista-racista-racista, racista vem de raças, racista racista, não estou a ouvir, ra-cis-ta. A falácia é tão descarada que desmascará-la insulta a inteligência dos leitores. Um estudo do ISCTE em 2017 mostrou que nas escolas a afrodescendência, controlando outras variáveis, aumenta significativamente a probabilidade de chumbo e de referenciação para o ensino profissional. Perguntem a estes miúdos quem é que é racista.
A resposta mais sofisticada é a da adequação do meio. Mariana Vieira da Silva, além de sacudir para cima do INE, veio dizer que há uma "necessidade imperativa" de informação étnico-racial dos cidadãos. Necessidade imperativa. E que devem ser feitos inquéritos, ainda mais regulares do que os Censos, com muitos meios, inquéritos só para isto, só para a questão racial (a tal que segundo uns é em si racista). O Censos não serve, mas um ou vários inquéritos servem. Perguntas em Censos não, perguntas em inquéritos sim. Abordar a questão em Censos é complexo, em inquéritos regulares sobre a questão é simples. Porquê, que perguntas, etc., ninguém sabe.
Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente, veio a jogo sobre a questão dizer que "a ideia era boa" mas que aquilo que fez o INE foi uma "decisão boa", uma "decisão sensata do INE porque se gerou um debate que não fazia sentido". Qual debate? E se tivesse havido debate, que debates sobre temas importantes não fazem sentido? E não fazem sentido porquê? E é melhor adiar um instrumento que permite diagnosticar com rigor e atuar, que é uma "boa ideia", porque se gerou um debate? Ficamos sem saber. É impossível não ouvir ecos do Gato Fedorento, é proibido mas pode-se fazer, só que é proibido.
A questão tem de ser feita. E não é preciso ser-se um génio para se perceber o que os resultados vão mostrar. Mas são esses resultados que vão permitir estudos e políticas. E esses resultados e estudos vão incomodar muita gente. Desde logo todos como sociedade que quer acreditar que não é racista, sendo essa uma especial forma de racismo, especialmente perigosa. Mas vai incomodar também certa elite de pensadores, organizações e políticos da área das inclusões que passaram sobre o tema do racismo interno como cão por vinha vindimada ao longo de décadas, deixando os ativistas a falar sozinhos como se fosse um problema deles, ou um não problema, ou um problema que tem de ser mais bem estudado. Quando a pergunta for feita vamos poder finalmente pensar com rigor sobre temas como encarceramento e enviesamento racial, medidas das penas, igualdade de acesso à habitação, mobilidade social, cuidados de saúde, obtenção de crédito, acesso ao emprego desde logo público, inclusão racial nos partidos, acesso ao ensino superior, listas de espera, tanta e tanta coisa que precisa de uma base credível e quantificada para que se faça diagnósticos e políticas públicas justas e reparadoras.
Da minha parte gastei muitos cartuchos, quase todos, telefonei a quem podia, chateei amigos sem conta em lugares importantes, falei disso na rádio, na televisão, nas redes sociais. Vou continuar. Até lá, não contam comigo.
Advogado