Desfado ou a sina de ser português

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1. Um dia antes das eleições em que cerca de quatro milhões de portugueses não foram votar, outros 1,4 milhões viram o reality show Quinta das Celebridades, líder de audiência dessa noite. O voyeurismo rasca de sofá parece ser mais atraente do que o tormento de sair de casa para votar.

2. Embora lamente que tantos não tenham votado, mesmo que fosse para fazer desenhos fálicos no boletim, penso na possibilidade de que alguns abstencionistas - muito poucos, imagino - possam fazer mais em função da democracia, no seu dia-a-dia, do que outros que foram votar porque o partido em que militam providencia ótimas perspetivas de emprego ou enriquecimento.

3. A democracia não começa e acaba no voto, precisa de ser exercida, defendida e melhorada perpetuamente, e, ainda assim, não se falou na campanha eleitoral da reforma da Justiça ou do sistema eleitoral e político - fundamentais para a adaptabilidade de uma democracia ao seu tempo -, como se aquilo que foi projetado em 1975 fosse perfeito e não precisasse de afinações mais regulares. O problema não é haver partidos, mas que sejam caguinchas, autocentrados e que prefiram o proveito que tiram do estado imutável das coisas ao interesse público.

4. A abstenção revela, mais do que descontentamento ou revolta, a nossa curta e, por vezes, pífia tradição democrática. Não se erradicam 48 anos de ditadura, ignorância e inação (para não irmos mais atrás na história) com 41 anos de democracia. A ideia do voto como único instrumento de participação, bem como o bipartidarismo e a estranheza que nos causam as coligações partidárias amplas, comuns noutros países da Europa, diminuem a nossa ideia de democracia a um dérbi futebolístico que se resolve com um golo de ouro: o voto.

5. Quando se soube o resultado das últimas legislativas, as redes sociais foram inundadas com promessas de emigração que soavam a ameaças. E ainda que tenhamos a liberdade de discordar do resultado eleitoral - porque aceitar que ele é legítimo não impõe que não possamos lamentar o sentido de voto dos nossos compatriotas (eu lamento) -, gostaria de aproveitar a minha experiência, de ter emigrado três vezes nos últimos 15 anos, para exortar quem pensa fazê-lo em função apenas dos resultados eleitorais: emigrem antes se for pela aventura ou pela necessidade. Ganharão uma perspetiva e uma estaleca que só se conseguem com a distância, a novidade, a diferença e a adversidade longe do colo. Mas também irão perceber que, estejam onde estiverem, haverá sempre desigualdade, ganância, abuso de poder, embrutecimento e empobrecimento, e que a luta pela democracia é um ofício sem folgas. Não é o nosso lugar geográfico no mundo que nos define, mas a forma como, em qualquer lugar, vemos o mundo.

6. Entre 1965 e 1975, quando um terço dos portugueses era analfabeto e um quarto era malnutrido, emigraram mais de um milhão de pessoas. Na excelente série documental da RTP Ei-Los Que Partem, as imagens mostram caras endurecidas e mal-acabadas, gente cuja miséria não era apenas passarem fome ou andarem descalços, mas estarem subjugados a uma ignorância e a uma sina esmagadora. Em França, os portugueses tinham dificuldade em entender que as horas extraordinárias eram pagas (ainda para mais a dobrar) não por generosidade do patrão, mas porque o trabalho tinha um valor, e esse valor estava consagrado na lei.

7. Perderam-se muitas oportunidades nestes 41 anos de democracia, mas demos um grande salto, ainda que confundamos demasiadas vezes conforto com civilização. No entanto, os portugueses que, como eu, cresceram em democracia e fazendo já parte da União Europeia enfrentaram algo novo: a comparação e a proximidade com os países mais desenvolvidos da Europa, antes inacessíveis, tornou-nos mais exigentes, mas também gerou frustrações, porque é impossível, em poucas décadas, colmatar o fosso que a convergência europeia deveria extinguir. E essa frustração resulta tantas vezes em queixume. O progresso, infelizmente, será sempre mais lento do que desejaríamos, e o imediatismo contemporâneo faz-nos esquecer, perder a perspetiva (onde estávamos há 41 anos, por exemplo). Um país não muda à velocidade do Facebook.

8. Perguntei a um brasileiro o que ele gostava menos em Portugal. Resposta: "Vocês se queixam muito, não sabem a sorte que têm." Considerando a grande maioria dos países do planeta, de facto, tivemos sorte de nascer aqui - e neste tempo. Só quem nunca viveu noutro lugar pode dizer o contrário. Mas essa sorte não deve ser uma desculpa para a resignação de antanho - "no conforto pobrezinho do meu lar há fartura de carinho" -, devendo ser antes uma responsabilidade e um dever. É talvez uma platitude digna de um livro de autoajuda dizer que a felicidade, tal como a democracia, dá muito trabalho. Mas fazer o que está certo quase sempre envolve perdas e sacrifícios. Ir votar, desenhar uma cruz num quadrado, teria sido o mínimo desses sacrifícios.

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