"O desafio para a Síria é saber como seguir em frente", diz Irmã "Pronto Socorro"

Annie Djemerjian nasceu em Damasco em 1967. Escolheu o caminho da fé e do catolicismo. E quando a guerra estalou escolheu também ficar a servir em Aleppo, onde construiu uma comunidade. Hoje está em Portugal para partilhar a sua experiência.
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Há quem lhe chame a Irmã Pronto Socorro e outros o Anjo da Guarda dos cristãos na Síria. Durante a guerra ajudou vezes sem conta famílias desprotegidas, denunciou ataques a bairros de cristãos, e perdeu a conta às viagens que fez entre Aleppo e Damasco para acudir ou para pedir apoio. Annie Djemerjian nasceu na Síria em 1967, na capital Damasco, numa família onde havia já três homens irmãos, estudou Engenharia Civil, foi professora na Arménia, mas foi no Líbano que integrou a Congregação das Irmãs de Jesus e Maria e que fez os seus votos de obediência.

Esteve fora durante quase oito anos, e só regressou a casa, à Síria, em 2003 para, com mais duas irmãs, criar uma comunidade em Aleppo. Quando a guerra estoirou, em 2011, deram-lhe liberdade para sair. Escolheu ficar. Ela e as outras seis irmãs da congregação. Viveu momentos difíceis e dolorosos. Momentos em que perdeu amigos e famílias que ajudava. Momentos de grande incerteza, em que só se pensava quando seria o próximo ataque. Sobreviveu. E está agora em Portugal para partilhar a sua experiência e alertar para os desafios que o povo sírio tem à sua frente - a reconstrução da paz, do país e das próprias vidas.

A Irmã Annie, como a tratam, vai estar nesta noite em Évora, na Igreja de Santa Clara, amanhã em Fátima, a rezar o terço com milhares de crianças, e na sexta-feira no Porto. Depois, regressa à Síria. À Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que a convidou, só tem a agradecer, como aos portugueses que rezam pela paz no seu país. Mas deixa um alerta: a guerra deixou uma ferida grande no povo sírio, que precisa de tempo para a curar. E um desejo: que os portugueses ajudem na construção da paz e da vida na Síria. Quando chegou a Lisboa aceitou falar com o DN. Às perguntas enviadas por e.mail, Annie Djermijian respondeu via áudio.

O que levou uma jovem árabe até ao mundo do catolicismo?

É errada a ideia de que as pessoas têm de associar de imediato um árabe ao mundo muçulmano e aos muçulmanos. Se recuarmos ao início da história da Igreja, os cristãos estiveram presentes desde o início na nossa terra. Neste momento, somos uma minoria, chamam-nos minoria, mas ainda temos muitos crentes.

Quando percebeu que queria ser religiosa?

Penso que tive um chamamento, senti que era um chamamento contínuo, que ia e vinha quando estudava, e quando acabei o curso decidi entrar para um grupo de oração. Perguntava-me muitas vezes sobre o que quereria Deus de mim. Mas nos meus 15/16 anos tinha dúvidas, questionava-me muito sobre Deus: onde estava, o que fazia, pelo que tinha morrido. Será que era um controlo remoto das nossas vidas? Todas estas questões me assolavam e vivi momentos muito difíceis na minha vida. Depois, quando comecei a ir ao grupo de oração e a rezar, a minha vida mudou muito. Foi quando achei que Deus estava a pedir-me mais e comecei a pesquisar algumas congregações e a procurar um lugar para mim. Entrei numa congregação, onde estive por uns tempos, mas não senti que me tivesse encontrado ali. Um dia, em Damasco, conheci a irmã Lourdes, que era da Índia, e começámos a falar. Ela partilhou comigo o trabalho que a Congregação das Irmãs de Jesus e Maria fazia no Líbano. Fui para lá e quando cheguei o meu primeiro sentimento foi que ali, no Líbano, me sentia em casa. Foi então que disse que sim à Congregação das Irmãs de Jesus e Maria.

Foi uma decisão difícil. Qual o maior obstáculo que sentiu para tomar essa decisão? A família aceitou bem?

Não foi uma decisão fácil. Era uma decisão para a vida. Levei quase um ano até decidir entrar numa congregação. Na altura tinha 28 anos. Tive muitos pensamentos e muito tempo de oração antes de me decidir. E havia algo, que não era propriamente um obstáculo, mas que me fazia pensar muito se avançava com a decisão: o que iriam dizer os meus pais? Eu era a única rapariga da família, tinha três irmãos, o que pensariam eles? Mas quando partilhei com os meus pais a minha decisão, eles acabaram por aceitar. A minha mãe disse-me que aceitava, mas com uma grande tristeza no seu coração, pois achava que Jesus lhe tinha roubado a sua única filha. E muitas vezes chorou. Agora penso que se sente feliz pela minha decisão. Com o meu pai penso que se passou o mesmo.

Nunca pensou em abandonar o trabalho que estava a fazer na Síria?

Quando decidi que queria ser religiosa fui para o Líbano fazer a minha formação. Estive fora mais ao menos durante oito anos, mas depois de fazer os meus votos de obediência segui para uma nova missão que me levou de novo à Síria, à cidade de Aleppo, em 2003. Fui eu e outra irmã que tinha estado comigo no Líbano e mais uma terceira que se juntou a nós. Íamos criar uma comunidade em Aleppo. Quando a guerra começou recebemos uma carta oficial da nossa provincial a dizer que iria ser um período muito difícil e que nem toda a gente conseguiria aguentar. Por isso, estávamos livres para decidir partir ou ficar. Na altura, a comunidade tinha sete irmãs, duas delas eram inglesas, que disseram logo que a Síria era o país delas e que não iriam partir. As outras cinco fizeram o mesmo. Não podíamos partir naquela altura, era uma altura muito difícil para o nosso povo e para o nosso país. Então decidimos ficar e continuar a servir.

Quais as situações mais marcantes que viveu durante a guerra e como descreve hoje o sentimento da população síria? O que ainda os faz sofrer e o que lhes dá alguma alegria?

Passámos tempos muito duros e difíceis com a guerra. E a experiência mais difícil e dolorosa foi a de perder pessoas com quem tínhamos falado no dia anterior e no dia seguinte já não estavam lá. Perder pessoas que conhecia, como um padre que trabalhou connosco durante dez anos e que era também um amigo, e muitas famílias durante os bombardeamentos. Foi muito doloroso. Umas vezes chorávamos, outras tínhamos medo. Vivíamos com um misto de sentimentos, mas porque estávamos juntas, porque nos apoiávamos, aguentámos. Foram tempos difíceis em que não estávamos felizes. O povo sírio sentia o mesmo. Muitas famílias perderam um ou mais elementos, perderam os seus empregos, as suas casas. É uma ferida que permanecerá nas suas vidas. Precisam de tempo para se curarem. E o que os torna felizes é a paz. Penso que este é o sonho do nosso povo. Neste momento, penso que sentem menos medo do que sentiam quando havia guerra. Foi um tempo de incerteza permanente. Será que vai haver ataques? Era o que pensávamos. Neste momento, não há esta preocupação. A preocupação de agora é: como posso começar a minha vida? Como posso seguir em frente? Este é o desafio do momento para o povo sírio.

Neste momento, o que é pior? Ainda a guerra nalgumas zonas ou a indiferença dos governos, dos Estados e do mundo em geral em relação à reconstrução da Síria?

As duas situações são más, porque sentimos que fomos traídos. Não quero ser mal entendida, até porque temos muitos irmãos e irmãs que decidiram ficar connosco e que defendiam a Primavera Árabe, mas quando se olha para o nosso país destruído perguntamo-nos se a Primavera Árabe era verdadeira. Se era verdadeiro que era Primavera. Qual era afinal o seu propósito? Houve dor a dobrar. Quanto à indiferença, é normal que os governos, os Estados, que os povos europeus não queiram ter nada que interfira com as suas vidas, penso que o povo sírio sente da mesma maneira. Não queremos que ninguém interfira nas nossas vidas, mesmo que o nosso país seja o pior do mundo. Quem tem o direito de interferir nas nossas vidas? Por isso perguntamos: o que aconteceu e porquê?

Esta vinda à Europa para partilhar a sua experiência pretende ser um alerta para o mundo? Que mensagem deseja passar?

Estou na Europa porque fui convidada pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) para vir a Portugal. Estou aqui para partilhar o nosso trabalho, a nossa missão, a nossa vida. Só tenho de agradecer à AIS por nos apoiar. Agora, se será um alerta para o mundo? Quem sou eu? Falo apenas sobre o que vivo. O povo sírio viveu tempos muito difíceis e precisa de tempo para se curar. Deus abre os corações e as mentes das pessoas e é preciso acreditar nisso.

Vai participar em várias conferências e outras atividades em Portugal. Hoje vai estar em Évora, amanhã em Fátima e depois no Porto. O que espera do povo português e das suas entidades oficiais e políticos?

Não tenho expectativas, estou aqui simplesmente para partilhar e agradecer. Hoje estive numa escola e vi muitas crianças a rezar pelas nossas crianças de Aleppo, só tenho de lhes agradecer por isso e muito. É isso que vou dizer também em Fátima quando milhares de crianças rezarem o terço pelas crianças da Síria. Para as entidades oficiais e para os políticos, apenas lhes posso dizer que percebo que as suas posições não são fáceis, mas rezo para que ajudem na construção da paz, na construção de instrumentos que possibilitem a paz na Síria e que desejo que ajudem na reconstrução do país e na vida do povo sírio.

O que mais deseja para a Síria?

É um desejo comum: que a paz chegue em breve e que os povos se unam na reconstrução do nosso país.

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