Descredibilizar a verdade com a bolha informativa

Pós-verdade: o conceito da moda foi inventado em 1992 a propósito da Guerra do Golfo, mas estava implícito nos ensaios de Jonathan Swift e Oscar Wilde. Está de volta, adaptado à falácia da informação
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A apropriação do nome de António Guterres começou quando este se recusa a abrir uma conta Twitter durante o processo da sua candidatura a secretário-geral das Nações Unidas. Entretanto, ocorreram várias tentativas de abertura de contas em seu nome por parte de estranhos, mas é na reta final da candidatura que surge o maior perigo. É que aparece uma conta que aparentemente parece ser oficial, pois apresenta todos os contornos reais, e na qual, alegadamente, Guterres anuncia que o embaixador russo nas Nações Unidas garante o apoio à sua candidatura. Apesar de detetada a irregularidade, não é possível desativar a conta, e o que António Guterres "anuncia" é levado muito a sério pelos outros diplomatas da instituição, que logo começam a retuitar o apoio dado ao português, e o mesmo se passa com vários meios de comunicação sediados em Nova Iorque, que a replicam em várias notícias de alcance global o tweet em inglês. Os dias seguintes são de intensa atividade de modo a denunciar a mentira, exigindo um pedido de desculpas ao diplomata russo e conversas com inúmeros jornalistas e comentadores, até que o pretenso Guterres, um ativista italiano repetente nestas iniciativas, se autodenuncia e justifica o ato como um alerta para a facilidade com que se pode criar um facto inverídico, devido à não confirmação por parte da comunicação social ou de outros utilizadores o que está na base das notícias. A intenção era mostrar como manipular a informação é fácil, que o italiano já fizera em vezes anteriores com os mercados e reuniões políticas, para mostrar o quão simples é tornar públicas inverdades.

Esta situação tem vindo a tornar-se comum na internet, tanto que neste ano houve dois casos excecionalmente claros de manipulação de atos políticos determinantes: o brexit e as eleições norte-americanas. Tanto num caso como no outro foram plantadas conscientemente notícias falsas na comunicação social e nas redes sociais que podem ter alterado o sentido de voto de milhões de eleitores em ambos os países. Os pseudoacontecimentos criados nas redes sociais tornaram-se parte da realidade, principalmente porque satisfazem as frustrações sociais e políticas de grandes faixas de eleitores.

Não é por acaso que esta descredibilização da realidade se tornou tão impactante em 2016, pois o mundo confrontou-se com o conceito da pós-verdade. Ou seja, o apelo à emoção na interpretação da realidade política sem que as respostas aos pseudofactos sejam tidas em conta.

Se nos meios de comunicação tradicionais o falso era detetado e repudiado, neste século em que hipercomunicação digital se torna o principal meio de promoção de ideias a nível global, verifica-se que a repetição continuada da inverdade pelo discurso político, mesmo que não tenha sustentabilidade ou seja desmascarado, se torna aceitável de tão repetido. Daí que se considere que a bolha informativa é tão gigantesca que acaba por descredibilizar a própria realidade.

Recentemente, a The Economist apontava a Alemanha, a Áustria, a Coreia do Norte, os EUA, a Polónia, o Reino Unido e a Rússia como os países onde a pós-verdade é prática comum. Portugal não parece ser, segundo os entendidos, um país atrativo para a falsa narrativa. Pelo menos, o governo não se queixa, segundo um seu responsável disse ao DN. Mesmo que a fonte se recorde de um tempo em que a maledicência nos blogues tentava criar uma realidade alternativa, situação que na sua opinião está em desuso.

As redes sociais enquanto plataforma de desentendimento deve ser um ângulo a ter em conta, até porque o intervalo geracional proporciona um divórcio entre os vários membros da nova comunidade global, ou seja, entre os mais jovens e os consumidores tradicionais da informação no suporte papel. Para Felisbela Lopes, investigadora na área dos media da Universidade do Minho, há consumos cada vez mais diferenciados e as prioridades não são as de há alguns anos. Afirma que as "agendas entre gerações estão desfasadas sobre aquilo que se considera ser a atualidade, principalmente a nível da realidade nacional". Explica que as novas gerações crescem no meio desta nova realidade e deixou de existir outra para eles. Apenas leem em ecrãs, o papel é-lhes estranho.

Para Felisbela Lopes, não há um cansaço no consumo de informação por ser tão acessível atualmente, mas sim uma uniformização num "jornalismo online pouco atrativo porque vive muito pendurado nas notícias das agências ainda iguais para todos os meios. Muito do que existe nas redes são boatos e uma pseudopartilha democrática de conteúdos que se transforma numa não verdade, um acesso que é muito perigoso para os mais novos porque grande parte das novas gerações só tem acesso à informação pelas redes sociais".

Marina Costa Lobo, investigadora doutorada em Ciência Política pela Universidade de Oxford, admite que a confiança na informação online ou tradicional não "se distingue pelo suporte, pois a qualidade de muitos órgãos online já é de confiança em Portugal". Considera que era mais fácil distinguir a qualidade da informação quando se "era capaz de a olho nu avaliar a qualidade de uma publicação". Não deixa de referir que "fazer um jornal em papel para publicar notícias falsas tinha um alto custo mas agora, em online, é muito baixo". Não deixa de referir que em Portugal "existem alguns sites que divulgam informação política falaciosa, com insinuações altamente ideológicas que não estão provadas, potenciando um fosso maior em termos políticos e acicatando sentimentos que já existem de desconfiança em relação à política. Ao que o fenómeno da viralidade acrescenta um impacto muito maior ao que se verificava antes das redes sociais".

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