Descobrir os rostos de uma França esquecida

Com Olhares Lugares, Agnès Varda volta a afirmar o seu gosto documental, agora com a cumplicidade do artista JR
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Quase parece uma fábula cinéfila, mas é uma verdade objetiva: com a nomeação de Olhares Lugares para o Óscar de melhor documentário, a realizadora Agnès Varda, de 89 anos, tornou-se a pessoa mais idosa a ser nomeada para um prémio competitivo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (a 90ª cerimónia dos Óscares realiza-se a 4 de março).

É também verdade que o filme não se apresenta assinado apenas por ela, sendo a realização partilhada com o artista plástico, fotógrafo e muralista francês, de 34 anos, que se identifica pelas iniciais JR. Em todo o caso, identificamos Olhares Lugares como reflexo de um desejo documental que atravessa toda a obra de Varda, não contrariando a sua sensibilidade romanesca, antes abrindo novos espaços narrativos para a sua expressão.

Olhares Lugares representa, afinal, o resultado do encontro criativo de Varda e JR. O seu projeto decorre de uma ideia muito simples: deambular pelos cenários de uma França esquecida, mais ou menos rural, dando conta da existência dos seus habitantes - lugares insólitos, rostos genuínos (o título original, Visages Villages, fala-nos, aliás, de "rostos" e "aldeias").

Quem viu o documentário Women Are Heroes (2010), realizado por JR, exaltando o papel das mulheres em contextos de muitas limitações financeiras e logísticas, não poderá deixar de estabelecer um óbvio paralelismo. Em ambos os filmes, JR fotografa as pessoas dos lugares que visita para produzir enormes retratos a preto e branco que, depois, são colados (literalmente) em superfícies públicas, sobretudo fachadas de habitações. Dir-se-ia que, através da aliança com Varda, JR encontra um peculiar suplemento narrativo - o filme que ambos assinam é, de uma só vez, um testemunho sociológico e uma crónica de contagiante ironia, pontuada por uma discreta pulsão utópica.

Olhares Lugares desemboca num delicioso episódio em que o par criativo se propõe encontrar Jean-Luc Godard, velho amigo de Varda e companheiro dos tempos heroicos da Nova Vaga francesa, há mais de meio século (vale a pena recordar que, em 1961, Godard, contracenando com Anna Karina, interpretou uma curta-metragem de Varda: Les Fiancés du Pont Macdonald). Sobre as peripécias que envolvem esse encontro, será importante manter alguma reserva, de modo a proporcionar ao espectador o prazer da sua descoberta. Seja como for, há nele um valor sintomático que importa sublinhar: longe de qualquer perspetiva "sociológica", Varda e JR assumem-se como repórteres de um país quase invisível na paisagem mediática, integrando memórias e experiências das suas vidas pessoais.

Nesta perspetiva, há mesmo qualquer coisa de "selvagem" num filme como Olhares Lugares. Em vez de reduzirem a França interior a um país pitoresco, televisivo e anedótico, Varda e JR expõem a sedutora estranheza de personagens e povoações - conhecer através do cinema é também trabalhar sob e sobre essa estranheza, evitando reduzir os outros a padrões universais.

Que hipóteses tem Olhares Lugares na corrida ao Óscar de melhor filme documentário? Muitas, a acreditar na maioria das previsões dos especialistas americanos (mesmo não esquecendo o impacto que tem tido a produção dinamarquesa Last Men in Aleppo, sobre a guerra civil na Síria). E convém não esquecer que, em novembro, nos Governor Awards com que a Academia distingue personalidades do mundo do cinema, Varda já recebeu um Óscar honorário.

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