Ele chega à meta dois décimos de segundo à frente do mais próximo adversário, uma enormidade que só acontece numa final olímpica dos 100 metros de 20 em 20 anos (a última foi de Carl Lewis, em 1984, Los Angeles). Ele sabe correr os primeiros 80 metros em velocidade de flecha, tanta, que dá para, nos últimos 20, afrouxar, pôr os braços abertos em glória e bater no peito - um festival de alegria e de falta de vontade de alargar a distância, ambas próprias de quem vem da ilha de Bob Marley, terra de reggae e deixa andar. Ele é tão raro que - como dizia o maestro Toscanini da voz de contralto de Marion Anderson - só há um de século em século. Ele levou o recorde mundial para 9,69 só com o desejo de fazer capicua porque, querendo, teria saltado a casa das 6 décimas e teria colocado o recorde nos 9,5 qualquer coisa, irrepetível talvez em décadas Ele, Usain Bolt, pode tudo, é tudo. Só não sabe uma coisa: atar as sapatilhas..Ontem, a maioria dos jornais de todo o mundo - incluindo o DN (como se comprova na crónica onde eu contei toda a admiração pelo feito de Bolt) - olhou para a extraordinária floresta de talentos que é o jamaicano e não viu a árvore do atacador da sua sapatilha esquerda desfeita, aos deus dará. Bolt desatou a correr com um sapato desatado. A maioria dos jornais publicou a foto desse extraordinário indício e não viu esse pormenor, e se viu não chamou a atenção dos leitores. Pormenor que não é menor - é mais do que um Presidente americano ir tomar posse de braguilha aberta, o que, em princípio, é irrelevante para o seguimento do mandato. Já aquele atacador de Bolt - tivesse ele, como é próprio dos atacadores desatados, feito tropeçar - podia ter dado cabo do único feito destes Jogos Olímpicos comparável com a ganância de medalhas de ouro de Michael Phelps..O atleta que não liga nada às suas sapatilhas, a ponto de se esquecer de laçar os atacadores, a primeira coisa que fez depois de atravessar a meta foi descalçar-se para exibir... as sapatilhas. Os Jogos Olímpicos já não são para amadores há muito, e Bolt cumpria os deveres que tem para o seu patrocinador. A Puma fez-lhe sapatilhas personalizadas, douradas e marcadas no calcanhar: UGO 100m Beijing. U (de Usain), go (de "vai" em inglês) aos 100m de Pequim. Será que aquela noite mágica até teve o golpe publicitário do século? Com sapatilhas Puma nos pés, não se preocupe com mais nada, nem em atá-las....Apesar de haver três jamaicanos nos oito finalistas do 100 m, só Usain Bolt subiu ao pódio para aquela corrida. Mas o seu ouro era a confirmação da já longa e fantástica presença olímpica da Jamaica nas provas de velocidade: Helbert McKenley (prata em Helsínquia, 1952), Lennox Miller (prata no México, 1968) e Don Quarrie (prata em Montreal, 1976). Já para não falar nos campeões nascidos na Jamaica que decidiram expatriar-se e correr por outros países, como Donovan Bailey, pelo Canadá, e Linford Christie pela Grã-Bretanha. .E, ontem, depois do sucesso do homem-relâmpago, três corredoras da Jamaica, também dos 100m, ocuparam todo o pódio. Uma pequena ilha das Caraíbas, com menos de três milhões de habitantes é, já não há dúvidas, a grande potência dos velocistas. Ontem, nesta crónica referi um factor genético que poderia estar por trás deste sucesso (a forte presença do componente Actinen A nas fibras musculares entre algumas populações africanas de onde são originários os jamaicanos). Acrescente-se um trabalho de já 30 anos da Universidade de Tecnologia da Jamaica que tenta descobrir e agarrar no país os potenciais campeões. Não há máquina para pôr cal nas pistas (rega-se com óleo e queima-se, para se verem as linhas), mas o programa de atletismo tem 280 alunos. E como no atletismo o homem é o capital mais precioso... |