"Derrubar também os muros benevolentes"

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Berlim recorda-nos, a cada passo, o que significa uma cidade dividida. Reforçar muros ou criá-los onde não existem é um risco que se corre sempre que se procura intervir sobre determinados territórios. Jerusalém, Nicósia, Belfast, Rio de Janeiro, Mostar são disso exemplo extremo.

Mas não são apenas ruturas radicais que encontramos nas cidades contemporâneas. O passeio pelos arredores de algumas das maiores cidades europeias permite, sem dificuldade, identificar fenómenos de separação física e de distribuição espacial desigual de grupos sociais. Os diferentes mecanismos de segregação urbana são - indiscutivelmente - um dos problemas mais complexos do mundo contemporâneo. Esta triagem física a que as cidades submetem diferentes grupos está, em muitos casos, associada a acessos desiguais a recursos e serviços, o que torna este um desafio de resposta urgente.

A consciência do problema não o resolve. Ainda assim, o primeiro passo para enfrentar a segregação urbana é compreender em que medida os diferentes grupos se encontram separados e quais as razões para isso. A elevada estratificação social associada a desigualdades espaciais é determinante na criação de vários problemas. As configurações socioeconómicas das cidades são fator condicionante de desenvolvimento, de tensão e, tantas vezes, de justiça. Mas estas não decorrem apenas de clivagens espaciais - ainda que nelas quase sempre se traduzam. A gentrificação, a divisão digital, a rutura geracional, particularmente com os desafios da demografia europeia, são também fatores a considerar.

Décadas de urbanismo associado a um pensamento não orgânico das cidades geraram formas de divisão socio-espacial. A afirmação edificada da desigualdade social inscreveu na retórica urbana a clara ideia de que há lugares privilegiados e lugares de abandono qualificado. Há uma necessidade imperiosa de redefinir como lidamos com a segregação urbana.

No entanto, as novas práticas de integração obrigam, também, a identificar as melhores formas de as avaliar e considerar os seus impactes. Alguns bairros urbanos enfrentam, hoje, uma nova forma de estigmatização, resultante de narrativas benevolentes disfarçadas de intervenção social e transformação, a maior parte das vezes nada mais do que formas de manifestação simbólica para autossatisfação dos próprios promotores.

A cidade dividida precisa de derrubar muros, sem a criação de novas formas de demarcação entre aqueles que sabem - os benevolentes - e os que precisam.

Pró-reitor da Universidade de Aveiro

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