Deriva
Os momentos de crise têm como efeito revelar o melhor e o pior de cada um. Passada a crise, surge a oportunidade para corrigir, mas também a de deixar tudo na mesma. A questão geral da segurança dos cidadãos, com duas crises quase coincidentes, a dos fogos de floresta e a do roubo de material de guerra, oferece-nos esta possibilidade de ver como se comportam as pessoas, responsáveis, executantes e observadores. Tal como nos proporciona o ensejo de verificar se há justiça e se existe capacidade para investigar e reformar.
Em Tancos, não se sabe quem, como, quando, quantas vezes, nem para onde... É o que é preciso apurar. Mas sabe-se que quem deixou não devia ter deixado, devia estar atento e devia prevenir e evitar: militares de serviço, chefes militares e responsáveis políticos. Quem, em concreto: é também o que é preciso identificar. Pedrógão: o paralelo com Tancos parece forçado, mas não é. Falta de coordenação. Descuido. Prevenção deficiente. E as questões financeiras, administrativas e jurídicas a pesarem mais do que a segurança e a vida das pessoas.
A seriedade das crises começou por ser esbatida. Só lentamente, com o número de mortos e o receio da opinião pública, as autoridades admitiram a gravidade. Mas a desvalorização manteve-se. O uso das emoções foi um medíocre substituto do empenho. A dissolução de responsabilidades foi, desde o início, atitude visível. As hábeis perguntas públicas do primeiro-ministro, dirigidas aos seus serviços, destinavam-se a revelar a sua distância e a definir a tentativa de atribuir as responsabilidades a quem está por baixo. A ausência do primeiro-ministro em férias foi um momento alto de mau governo. Quis mostrar, contra a evidência, que nada de especial se passava.
O governo e a actual aliança parlamentar maioritária querem zelar pelo que corre bem e distribuir o que existe. Mas não deram provas de saber reagir a crises surpreendentes. Nestas últimas não havia nada de bom a tomar conta ou a distribuir. Havia perda, medo e morte. Perante isso, o governo seguiu pelos maus caminhos da dissolução de responsabilidades.
É possível que possam vir a ser identificados os que por incompetência ou malícia conduziram a esta situação. Como pode acontecer que haja inexperiência negligente a merecer reparo. Em qualquer caso, com ou sem responsabilidade ministerial, espera-se que tudo seja apurado e que haja castigo. Mas não com displicência. Nem covardia. Nem falta de sentido de responsabilidade. Só com provas robustas podem os governantes pôr em causa militares, bombeiros, técnicos, polícias e guardas. E só com certezas se pode identificar a incompetência governamental e a negligência política. Tudo leva a crer que haja falhas nos dois planos, o dos serviços e o dos políticos.
Os militares não merecem tratamento de excepção. São pessoas, cidadãos e profissionais como tantos outros. Mas merecem atenção especial, porque não são como os outros. Tal como os guardas, os polícias e os bombeiros, a quem se pede um grau de disponibilidade que envolve perigo de vida, os militares merecem essa consideração. Além disso, são grupos profissionais a quem foram justamente cerceados direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e os direitos de associação política e foram imputados deveres de obediência e recato que outros não têm. Tudo isto fundamenta um tratamento especial que os políticos têm a obrigação de respeitar. Ora, o actual governo e a actual aliança parlamentar não sabem exercer essa sua responsabilidade moral e política, não sabem tratar os militares como deve ser.
O actual poder político tem pena dos mortos, mas oscila entre o desprezo e a submissão. Desprezo por quem corre perigo de vida. E submissão perante quem tem dinheiro ou votos...
As minhas fotografias - Soldados na Praça Santo Isaac, em São Petersburgo, Rússia.
Há nestes dois amigos um sentido de humanidade. Ainda há pouco tempo esta praça era um centro histórico comunista. Não se imagina nessa altura um militar soviético com um amigo de manga cava, telemóvel, cigarro e cerveja. Num dos lados da praça, encontram-se os hotéis Angleterre e Astória, que hospedaram tudo quanto é gente: Rasputin, Tolstoi, Lenine, Isadora Duncan, George Bush e Madonna andaram por ali. Nos outros lados, o Palácio Mariinsky, assembleia legislativa da cidade, assim como o antigo Palácio dos Correios (conquistado por Trotsky, durante a revolução...). A poucos metros, a estátua do czar Nicolau I, uma das raras estátuas equestres apoiada apenas nas patas traseiras. O principal edifício é a Catedral de Santo Isaac, que foi durante o comunismo Templo do Conhecimento e Museu da História da Religião e do Ateísmo! Também a cidade já foi Petrogrado, do czar, São Petersburgo, do Santo e Leninegrado, do ditador.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.