Derek Jarman: a Inglaterra e a poesia do excesso
Foi numa Londres homofóbica que Derek Jarman inscreveu a sua forte expressão artística gay. Uma das maiores referências da contracultura britânica das décadas de 1970 e 80, o pintor, realizador, cenógrafo e argumentista que morreu em 1994, aos 52 anos, é o nome escolhido para assinalar a vigésima edição do Festival Queer Lisboa, através de uma retrospetiva que espelha e, naturalmente, celebra o pioneirismo das suas formas de abordagem sociocultural, quer através do cinema quer noutras linguagens audiovisuais.
[youtube:F7VqAK3WI3Y]
Falar de Jarman é falar da sua relação com a cultura punk, do papel ativo e obstinado na crítica ao thatcherismo, da luta contra o VIH/sida, de que era portador, da sua perspetiva homossexual da história (que não deve ser confundida com revisionismo), e da posição marginal face ao autoritarismo da sociedade capitalista. De tudo isto a sua obra é um reflexo acentuado, febril, que, mesmo no ângulo mais intimista, nunca se desligou de uma consciência geracional e das causas a ela associadas.
De entre as longas-metragens que se encontram programadas neste Queer 20, The Last of England (1988), será porventura o título mais emblemático, que consiste numa montagem de filmes Super 8 com outras imagens e registos, resultando numa decadente, e ao mesmo tempo, poética representação dos anos 1980 em Inglaterra. Eram os tempos do governo homofóbico de Thatcher, e Jarman oferece-nos uma perceção crua da cidade de Londres transformada num cenário de violência e drogas favorecido pelo Estado. Aí, numa evocação do quadro homónimo que inspirou o filme, do pintor Ford Madox Brown, e que retrata dois migrantes a deixarem o país, vamos encontrar Tilda Swinton vestida de noiva, prestes a sair de Inglaterra, naquele que é um dos planos mais simbólicos de The Last of England. Swinton foi, aliás, a grande descoberta do cinema de Jarman, tendo-se estreado no magnífico Caravaggio (1986) e depois percorrido a sua filmografia, inclusive em alguns dos títulos ausentes desta mostra, como War Requiem (1989) ou Wittgenstein (1993).
Pelo seu hiperbólico comentário político, The Last of England é de resto o título gravado no próprio nome deste ciclo organizado pelo festival, em colaboração com o produtor James Mackay e William Fowler, do British Film Institute, a quem vão juntar-se outras figuras próximas de Derek Jarman, nomeadamente o ator e ex-companheiro Keith Collins, num debate sobre a vida e obra do realizador (dia 22, na Cinemateca).
Cinema de causas e da intimidade
Por sua vez, e correspondente ainda à primeira década da carreira, Jubilee (1977), segunda longa de Jarman, constitui-se como a maior insígnia da ligação ao universo punk (com a devida distância crítica), em que vemos a rainha Isabel I (1533-1603) ser transferida para o epicentro dos anos 1970, com o seu reino dominado pelos punks, que semeiam o excesso, a desordem e o crime pelas ruas.
Contemporâneo de Isabel I, William Shakespeare habita também, através da escrita, claro, o imaginário de Jarman, surgindo em The Tempest (1979), uma adaptação sombria e extravagante da peça A Tempestade, e ainda em The Angelic Conversation (1984), onde se ouvem sonetos seus, na voz de Judy Dench, a definirem um intenso labor estético, visual, de carga homoerótica. Já agora, outra das suas incursões no texto teatral que vamos poder ver em Lisboa é Edward II (1991), peça de Christopher Marlowe que Jarman levou ao grande ecrã recorrendo ao anacronismo para espelhar a causa atual da homossexualidade na época desse monarca inglês.
Num cinema de carga íntima e pessoal mais pronunciada, como aquela que se descortina em The Garden (1990), Blue (1993) e Glitterbug (1994) - o seu último filme, feito para a série documental Arena, da BBC, que não chegou a ver - Jarman deu liberdade máxima ao traço experimental que atravessa toda a sua filmografia, enquanto autor de formação artística. Realizado quando a sida lhe começou a dar presságios claros sobre o fim da vida, Blue será, para todos os efeitos, o mais estranho destes objetos, feito de um único plano azul, com música de Brian Eno e quatro vozes em off (do próprio Jarman, Tilda Swinton, John Quentin e Nigel Terry) que vão expondo os efeitos do vírus e uma reflexão autobiográfica desenvolvida a partir da cor. Glitterbug, o derradeiro título, completa esta espécie de elegia, revelando a montagem (que foi terminada por amigos) de fragmentos de filmes caseiros que Jarman fez com a sua Super 8, entre 1971 e 1986.
Estas longas-metragens compõem a retrospetiva e vão estar em exibição na Cinemateca, a partir do dia 17 e até 24.