Deportado em São Tomé foi preso do ano para a Amnistia

Castigo. No final do salazarismo, o regime tentou vergar o advogado oposicionista, fixando-lhe residência numa ilha de clima tropical e em que poucas pessoas ousavam falar com o degredado
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"Levava um fato de flanela espesso, próprio do inverno lisboeta" quando aterrou em São Tomé e sentiu o "calor insuportável" do arquipélago que fica na linha do equador, recordará num artigo no Expresso (citado na Fotobiografia). A sugestão tinha sido do diretor da PIDE, Silva Pais, e o inspetor Sachetti, "impecavelmente vestido e perfumado" quando o informou da decisão de lhe fixar ali residência, comunicou-lhe: "Dentro de meses ninguém se lembrará que houve um advogado chamado Mário Soares" (idem).

Na origem do desterro estava o caso de pedofilia, investigado pela Judiciária, que envolvia ministros de Salazar e ficou conhecido como Balletts Roses. O escândalo tinha-lhe sido contado, em casa de Sophia de Mello Breyner, pelo advogado Pires de Lima. Depois, o socialista foi visitado, no seu escritório, por um jornalista do Sunday Telegraph e, após sair a notícia, pela PIDE, que ali o prendeu sem mandado. O ministro Franco Nogueira anota, a 11 de janeiro de 1968: "De grande excitação o ambiente de política interna. Escândalos de alguns políticos com raparigas menores, supostos, exagerados, ou verdadeiros, são pretexto. Mas o caso é mais complexo e profundo: trata-se de ataque frontal ao Governo de Lisboa, e não só por elementos da oposição portuguesa" (Um Político Confessa-se).

Três meses preso, como de costume acusado de "atividades contra a segurança do Estado", antes de o habeas corpus pedido pelo advogado socialista José Magalhães Godinho ter efeitos práticos, foi libertado. E, em março de 1968, o subdiretor da polícia política informa-o que ia ser deportado, por tempo indeterminado e sem fundamento legal - e "eu nem sabia ao certo onde estava São Tomé no mapa" (Ditadura e Revolução) .

"No torvelinho do choque entre governo e oposições", regista Franco Nogueira na Biografia de Salazar, "é detido Mário Soares, contra quem a polícia afirma possuir provas materiais, que diz irrefutáveis, e que demonstram a sua responsabilidade na campanha [para enfraquecer o regime]; é-lhe fixada residência em São Tomé pelo chefe do Governo e da decisão é interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo" - e será com base nesse recurso que Marcello Caetano, ao subir ao poder, deixará regressar a Lisboa o seu ex-aluno de Direito, numa espécie de aceno à sua anunciada abertura.

"Nunca tinha ido a África antes" e, vendo ainda a polícia a agredir família e amigos que se tinham ido despedir ao aeroporto, foi para o desterro num voo direto para Luanda e, dali, num "teco-teco" para São Tomé (Fotobiografia), acompanhado pelo inspetor Abílio Pires, o "especialista dos intelectuais" (Uma Vida). Depois do choque ao sair do avião (40 graus, toda a agente de roupa branca e em mangas de camisa), alojou-se numa pensão. "Aquele ambiente morno e sonolento [que se vivia na ilha]", escreverá Mário Jesus da Silva, "foi um pouco agitado quando ali desembarcou o Dr. Mário Soares, exilado por razões políticas" (Sortilégio da Cobra).

Por essa época, também se alojavam na pousada de São Jerónimo muitos mercenários que participavam na guerra do Biafra, que Portugal apoiava pouco discretamente, permitindo armazenamento e trânsito de armas e de medicamentos em aviões Super Constellattion - até o dinheiro do novo país foi impresso na Casa da Moeda. Suecos, alemães ou portugueses, os pilotos dos frágeis aviões T-6 e Minicoin (também conhecidos como "Biafran Babies"), que enfrentavam os poderosos caças Mig da Nigéria, numa "guerrilha dos pobres", recebiam por mês o equivalente ao preço de dois automóveis Jaguar. Em Lisboa, os amigos convencem-se da hipótese "de um mercenário ser pago para sobre ele exercer qualquer tipo de violência", mas o deportado "acabará por estabelecer laços do mais cordial convívio com os aventureiros seus vizinhos" (Uma Vida).

Mário Silva, que se tornou um dos poucos brancos da colónia que fazia questão de privar com o oposicionista, lembra que, certa vez, "à saída do restaurante, estava parado a uns vinte metros um velho Volkswagen "carocha" preto, em direção ao qual o Dr. Mário Soares dirigiu um aceno bem-disposto e irónico, que nos despertou a curiosidade. Era a PIDE local, que mantinha uma vigilância adesiva e permanente, seguindo-lhe todos os passos" (Sortilégio da Cobra).

E, no dia 24 de maio, o ditador anota na sua agenda o tema da audiência ao governador de São Tomé: "estadia do Dr. Mário Soares" (Salazar - Uma Cronologia, de Fernando de Castro Brandão). O representante do Governo parecia quase tão aflito como o chefe da PIDE local, que mobilizava os seus 22 agentes para vigiarem o deportado dia e noite.

"A sua vida em São Tomé decorre entre a curiosidade dos seus habitantes, classificados em estratos raciais, de acordo com os esquemas típicos de exploração implantados nas velhas colónias"(Um Combatente do Socialismo). Isolado na ilha até novembro, ao tentar defender um pobre empregado acusado de furto - "estudei o processo como nunca tinha estudado nenhum, fiz daquilo o processo do regime" (Uma Vida) - percebeu que não podia advogar, pois a sentença do juiz, para espanto geral, foram 13 anos de prisão. Ainda tentou, como Maria Barroso, ser professor do liceu. Sem êxito. Também o convite para ser advogado, com uma avença, da roça de Água--Izé, da CUF, lhe seria retirado, após pressões da polícia para a empresa não contratar "tão nefasto advogado, traidor à pátria".

Quase sem ninguém com coragem para lhe falar (os negros deixavam-lhe discretamente, à porta, frutas e mariscos como manifestação de simpatia), a PIDE nem o deixou enviar uma carta de condolências ao embaixador americano pela morte de Martin Luther King - e só saberia do parisiense Maio de 68 através de um transístor, que lhe tinha chegado clandestinamente, em que ouvia a Rádio Brazaville.

Uma das exceções ao medo geral - além de Mário Jesus da Silva e mulher, da família Malveiro, do engenheiro Goulão (da roça Água-Izé) e poucos mais, todos alvos de avisos da PIDE ("não será bom manter esse convívio; pode ter consequências desagradáveis") - foi o alferes miliciano Eduardo Fortunato de Almeida. Homem de confiança do governador e que pertencia ao Quartel-General do comando militar, mas que tinha sido seu aluno no Colégio Moderno e, na altura a cumprir serviço militar na colónia, procurou o político e afirmou-lhe a sua solidariedade. Soares nunca esqueceu o gesto. Como nem todos os envelopes chegavam ao destino, pois a polícia política, como repetiria nos anos de exílio, ficava com vários, Fortunato de Almeida passou a ser intermediário seguro, pois "levava as cartas [endereçadas em seu nome]debaixo da boina ou do chapéu" (Uma Vida). E Mário Silva recorda, em Sortilégio da Cobra, o muito que se riram quando "a alfândega não deixou passar e lhe reteve o livro O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Talvez por causa do "vermelho", que podia cheirar a marxismo".

Em Lisboa, os socialistas formavam o que a polícia política designava como a "Comissão de Socorro [ou Auxílio] ao Dr. Mário Soares". Ao mesmo tempo, choviam telegramas e cartas de protesto em Belém e em São Bento, da Fédération Démocratique Internationale des Femmes, da Liga Portuguesa dos Direitos do Homem, de professores da Universidade de São Paulo, dos exilados no Brasil (esta dirigida ao cardeal Cerejeira) e da Amnistia Internacional. "Fui um dos beneficiários dessa organização humanitária, que me declarou, em 1968, 'preso do ano'" (Elogio da Política). O relatório da Amnistia dizia que "o mais famoso exemplo deste tipo de atuação da PIDE [prisões sem culpa formada e medidas de segurança adicionais às penas] é o caso do conhecido advogado e social-democrata opositor de Salazar, Dr. Mário Soares".

Palma Inácio (autor do desvio do avião da TAP) fez um plano para o libertar, que Soares achou "sempre uma loucura" (...): teria de sair de noite, numa piroga, para apanhar um barco fora das águas territoriais de São Tomé. Embora o plano fosse [viável] (...), o mar estava infestado de tubarões (...). Encarou-se depois a hipótese de fuga de um helicóptero que pousaria no próprio aeroporto", mas "nunca se arranjou" (Ditadura e Revolução).

Até que, uma manhã, no barbeiro - que era " retrosaria, drogaria, livraria e papelaria" (Fotobiografia) -, ouviu na rádio que Salazar caíra da cadeira. Nessa altura, lembraria Mário Jesus da Silva, "tinha na sua posse uma carta recente de Marcello Caetano, em que este referia que não concordava com o exílio a que o tinham forçado e que, se estivesse na sua mão, o faria regressar com a brevidade possível. Estava lá escrito, preto no branco" (Sortilégio da Cobra). O sucessor de Salazar - e Soares acalentou o projeto de escrever uma biografia do ditador, pois "gostava de conhecer melhor essa figura e o seu tempo" (O Que Falta Dizer) - deixa regressar o oposicionista, mas, lembrava Raul Rego, no Diário Político, "não se deixou dizer [nos jornais], na altura".

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