Depois do vírus, as pessoas!

Publicado a
Atualizado a

Passaram dois anos. Parece uma vida, ou várias. Há dias conversava com um amigo sobre estes tempos e dei por mim a pensar que a memória é uma valente aliada da esperança. Dizia ele, sem esforço, que tinha poucas lembranças do primeiro confinamento. Recorda os silêncios e as ruas vazias, mas pouco mais. Há momentos que tendemos a esquecer apenas para nos protegermos. Uma coisa diferente é acreditar que as marcas, ou mesmo as feridas que ficaram, se evaporam como algumas memórias.
Portugal enfrentou esta pandemia com coragem e heróis anónimos. À nossa maneira, com valentia e pouco planeamento, fomos resolvendo os problemas graças ao profissionalismo de quem esteve, não apenas na linha da frente, mas em todas as fileiras do combate. Fomos convocados para a batalha com um exército curto, desmotivado e já à beira do esgotamento. Foi essa gente que derrotou o vírus e o medo. Falo, neste caso particular, dos enfermeiros, sem esquecer todos os outros profissionais de saúde que responderam à chamada. Destaco o trabalho na identificação, no acompanhamento e no tratamento, mas também no exemplo que constituiu o processo de vacinação.

Com a chegada do Almirante Gouveia e Melo, ficou clara a importância de uma liderança capaz e colocou-se um ponto final nos processos pouco transparentes de um País que se habituou a fechar os olhos aos fura-filas. Com ele, o desenrasca tradicional deu lugar ao planeamento e Portugal percebeu que não está condenado ao salve-se quem puder. É isso que também fica para a história destes dois anos.

A verdade é que a pandemia colocou a nu as fragilidades do Serviço Nacional de Saúde, mas realçou também a sua preponderância enquanto pilar da Democracia. Dois anos depois, é preciso ter claro que o cenário que tínhamos no pré-pandemia não se resolveu por magia e temos hoje, depois do trauma, dores de cabeça adicionais. Os problemas de acesso agravaram-se, os profissionais continuam a emigrar ou a fugir para o sector privado, os enfermeiros permanecem mal pagos e mais cansados, as carreiras estão esquecidas e a gestão competente foi penalizada. Junta-se a isto o destapar do drama da saúde mental e da ausência de uma estratégia clara para os cuidados continuados.

Dois anos depois, ficou claro como é duro envelhecer em Portugal, um país que não é para velhos, nem para novos. Uns resistem como podem, os outros emigram em busca de um futuro que não os coloque, apenas, à mercê da sorte, ou do favor. Os números destampam o que a retórica esconde. Desde 2016, altura em que António Costa tomou posse, emigraram 12.272 enfermeiros. Um número que compara com os 9953 que deixaram o País entre 2011 e 2015. Este Governo conseguiu o feito de ter superado os tempos da Troika. Nunca emigraram tantos enfermeiros, 4506 só em 2019. As razões são claras e conhecidas, basta perguntar às pessoas que estão sentadas nas salas de espera dos hospitais ou centros de saúde. A opinião pública conhece hoje, melhor do que nunca, o dia a dia do enfermeiro que trabalha em Portugal.

Vamos às comparações. Os enfermeiros portugueses são dos mais mal pagos da OCDE, com um salário anual médio de 23 mil euros, pouco mais de metade da média (41 mil euros anais), sendo que já fomos ultrapassados por realidades como a do México, Turquia, Grécia e Eslovénia. O cenário está estampado no último relatório Health at a Glance 2021, que traça um perfil negro da carreira da enfermagem em Portugal, cada vez mais na cauda da OCDE.

É urgente avançar com uma estratégia de retenção dos enfermeiros. Sem isso, podemos discutir modelos de financiamento, investir em infraestruturas e reinventar a roda, mas de nada servirá. O tempo é de valorização dos recursos humanos assente em três pilares: salário, carreira e condições de trabalho. Sem isto, nada feito.

O novo Governo toma posse num contexto particularmente desafiante. O diagnóstico está claro e é consensual. Temos graves problemas de acesso aos cuidados de saúde, assistimos à fuga dos recursos humanos para o privado e para a emigração, assim como insistimos em querer garantir um modelo constantemente subfinanciado e refém das cativações do Terreiro do Paço. Os próximos quatro anos podem trazer a estabilidade necessária para fazer as reformas constantemente adiadas. A luta agora é contra o tempo e pelas pessoas. Colocar o doente no centro de qualquer modelo significa, antes de tudo, valorizar quem cuida. É esse o compromisso que os enfermeiros querem da parte de quem decide. O primeiro-ministro promete diálogo, mas o tempo é de ação e de transparência.

Numa altura em que o País se prepara para receber mais um pacote de milhões de Bruxelas, agora em formato PRR, é preciso que fique clara qual a fatia que será destinada à Saúde e de que forma será executada. Ou se quiserem, como é que o dinheiro chegará à vida das pessoas, quer através da valorização dos profissionais, quer ajudando a mitigar os problemas de acesso aos cuidados de saúde. Depois de dois anos de luta e exposição óbvia dos problemas do sector, ninguém aceita que se perca esta oportunidade.


Bastonária da Ordem dos Enfermeiros

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt