Depois de Greta as desculpas acabaram. O mundo partiu-se
Na segunda-feira o discurso, e depois as reações a Greta Thunberg, tornaram ainda mais claro como o mundo está a pender para a rutura. Há uma realidade que demonstra uma poderosa aceleração, destruidora, do efeito de alterações climáticas na natureza. E há um rompimento social, cada vez mais evidente, entre as pessoas que assumem querer evitar o caos ambiental versus as que não estão dispostas a mudar o seu estilo de vida. Porque, sejamos claros: a esmagadora maioria das pessoas não quer ou não sabe, em concreto, mudar a sua vida. Entretanto, o tempo escoa-se. Que fazer com isto?
1.
Para cada problema há uma pergunta gigantesca. Comecemos por uma pequena, como esta: na semana passada, o primeiro-ministro pareceu estar disponível para fechar mais cedo do que o previsto (2030) a Central Termoelétrica de Sines, alimentada a carvão. Este tipo de centrais representa um dos cancros ambientais pelo mundo todo. Consequência desta possibilidade: os trabalhadores da central entraram em alerta e os sindicatos (e certamente a própria EDP) começaram já a tentar a provar que não é Sines que faz diferença num contexto tão brutal e global de emissões.
Certo ou errado? Fechar a Central está certo. E é verdade que os Estados Unidos, a China ou a Índia vão manter a suas centrais a carvão a trabalhar. Mas a rutura que estamos a antever é clara: de que lado está a razão e para onde corre a História? Fechar Sines. Consegue-se? Quanto custa? Quantas pessoas vão sofrer com isso? (Em paralelo: quantas sofrem, longe de Sines, com tufões, subida do nível do mar e rios ou perda de colheitas?). É em questões, a doer, como esta, que tudo se vai decidir.
2.
De cada vez que se fala da redução do consumo de carne aparecem pessoas a pedirem para se deixar as vacas em paz. É um ponto de vista humorístico porque tendemos a avaliar a existência dos outros animais em função do nosso próprio interesse. Mas, passando por cima do antropocentrismo, a verdade é que mudar a alimentação é das coisas mais difíceis. Estamos perante um dilema enorme: as indústrias alimentares a quererem produzir mais e o planeta a não conseguir gerar recursos de forma equilibrada.
Veja-se o caso da desflorestação para produzir soja, que por sua vez alimenta gado, que a seguir dá origem à carne bovina.
Ou o óleo de palma, tão presente de forma invisível em tantos alimentos transformados do mundo ocidental e que está na base da desflorestação indonésia e do início da guerra civil da Síria (fruto da seca e diminuição da produção).
Que decisão tomamos quando compramos cada produto, como sempre fizemos?
Ou, pura e simplesmente, o consumo de água plástica engarrafada - já para não falar de um produto mil vezes pior como o refrigerante açucarado. Nos países árabes a praga dos diabetes, por força do consumo de refrigerantes, tornou-se astronómica. É má pegada ecológica pela embalagem, mas é sobretudo infinitamente pior pelas consequências humanas e ambientais de seres humanos com doenças assim. Mudamos? Como?
3.
Imagine uma grande empresa com um orçamento para marketing de milhões. Qualquer que seja o produto, por pior que seja, transforma-se em verdade sem que nos interroguemos da plausibilidade do que nos estão a dizer.
Repare-se, por exemplo, na publicidade da indústria automóvel. O que se consideraria essencial produzir nos tempos que correm? Carros de baixa pegada carbónica. Acontece que o sistema produtivo não muda de um dia para o outro. Veja-se por exemplo (é meramente ilustrativo este caso, há muitos outros) a campanha que a BMW começou a fazer esta semana com a reformulação do seu veículo mais pequeno - o Série 1. As emissões de carbono deste veículo ainda estão acima das 100 gramas por quilómetro - de 118 a 188 diz a marca. Ora, este número é elevado para um carro tão pequeno.
Ou seja, a empresa alemã continua a acreditar que os consumidores não se vão importar com isso. E provavelmente tem razão. Como mostraram as reações ao discurso de Greta Thunberg, não queremos mudar, nem que nos atirem à cara décadas de crescimento económico sem equilíbrio económico. Que nome deu a BMW à campanha? "Isto não é um upgrade. Isto ultrapassa tudo". Pois ultrapassa. Este carro, à exceção do "start&go" no arranque, teria sido lançado assim há 10 anos atrás, como se vivêssemos no mesmo mundo de então - e não houvesse um alerta global.
Se uma empresa com o poder da BMW ainda está neste ponto, então a jovem sueca está a ser lisonjeira. Ninguém está mesmo a querer mudar o que quer que seja rapidamente. "How dare you, BMW"? Por mais que a marca germânica esteja a eletrificar-se para 2025, lançar carros assim, hoje, é continuar no "business as usual". Como se houvesse muito tempo.
4.
O Governo prometeu equiparar o custo das deduções do gasóleo às da gasolina nas despesas das empresas. Este impulso fiscal não resolve muito do ponto de vista carbónico, mas é um sinal para tentar aliviar a poluição com partículas e óxido de azoto nas cidades. Questão: as empresas vão optar por veículos a gasolina (que consomem mais)? Aliás, conseguem dar um passo além e gastar 50% acima para optarem por veículos elétricos?
Aliás, mais um exemplo de "fraude" no compromisso de nós todos - não apenas dos políticos - com o que está à nossa volta: na Holanda há incentivos fiscais aos veículos híbridos "plug-in", tal como cá. Estes veículos resolvem uma parte do problema: têm uma autonomia elétrica média de 50 quilómetros, o que garante 90% do uso do automóvel ao longo da sua vida (nas deslocações casa-trabalho). Estes veículos são, portanto, mais baratos que os das versões diesel e gasolina. Resultado prático: um estudo indicava que uma boa parte dos utilizadores não os carregam, beneficiando apenas do bónus fiscal.
Lá está: na verdade dá algum trabalho fazer isso. Nem toda a gente quer gastar dinheiro para mudar a garagem (nem toda a gente tem garagem...). E a pequena bateria dos "plug-in" dissipa-se rapidamente. Mas aqui está um exemplo de responsabilidade social individual. Se os consumidores não percebem o seu papel, não adianta os incentivos fiscais disponibilizados pelos políticos.
E é aqui que o discurso de Greta tem de ser lido de forma mais vasta: os Governos fazem o que pressentem que preocupam as pessoas (como se está a ver em Portugal nesta campanha). Além disso, aqueles políticos que Greta acusou representam décadas de "políticos" que, mesmo já sabendo do caos climático, não quiseram saber do problema.
No entanto, há muito mais naquela acusação da ativista sueca. Porque "os que mandam" não são apenas os políticos. São donos de empresas, acionistas de bancos, capitalistas de risco, fundos de investimento, especuladores, gestores, diretores de marketing, responsáveis públicos intermédios e, no final, todos nós os que validamos, dia após dia, compra após compra, a manutenção deste circuito demencial de bem-estar individual sem compromisso com os outros ou com a natureza.
Concluindo: 23 de Setembro de 2019 pode ter-se tornado numa data em que descobrimos a verdadeira pandemia de ódio à mudança que se revelou através de subtis, humorísticos ou grotescos ataques a Greta. Só que estes ataques vão contra o único sentido da História ainda possível - salvar o planeta. E o mundo está agora visivelmente mais partido como a auscultação das redes sociais deixou perceber. O lado bom desta bomba de raiva de Greta é o de que a energia humana para lutar contra a inação também explodiu graças à sua humanidade sem filtro.