Depois da revolução a retoma da tradição
Quando se celebra o centenário do nascimento do pintor catalão Salvador Dalí (Figueres, 1904-1989), a editora Círculo de Leitores lança em Portugal um original portfolio, concebido pela Fundació Gala-Salvador Dalí (www.dali-estate.org) Dali Íntimo / Desenhos, notas e palavras entre contemporâneos.
Se o título não é feliz - pouca «intimidade» terá sobrado ao exuberante artista plástico, que quase nunca resistiu à exposição feérica da sua vida e obra - o conteúdo do álbum revela-se, pelo contrário, muitíssimo curioso. Montse Aguer, sua organizadora e directora do Centro de Estudos Dalinianos da FG-SD, afirma no «prólogo» que obra foi estruturada segundo o modelo surrealista do «cadáver esquisito» (jogo sobre o «sentido», inventado por André Breton e Paul Éluard, em que vários colaboradores inseriam frases e desenhos num papel que ia sendo dobrado, desconhecendo cada um deles as anotações anteriores).
O inconfundível «olhar» de Dalí desenvolve-se aqui em quatro séries formação e vanguardas; Gala, sua futura mulher; anos de surrealismo; obra posterior. Em desenhos que vão da «revolução» à retoma da tradição Renascentista («o mais subversivo que pode acontecer a um ex--surrealista são duas coisas: tornar-se místico e saber desenhar», escrevia em 1951), surgem-nos vários motivos da sua pintura, observados criticamente nas intervenções, praticamente inéditas, de importantes criadores (desde os que partilharam a reacção surrealista, como Breton, Buñuel, Cocteau, Char ou García Lorca, até Luchino Visconti ou Stefan Zweig). Admire-se, pois, a reveladora meticulosidade com estas personagens discutiam as relações entre arte e política (veja-se a carta em que Dalí critica Buñuel pela sua cega submissão aos ditames estéticos do Partido Comunista), o significado e valor da arte contemporânea, o cenógrafo e figurinista que Dali também foi.