António: "Após a história do NY Times recebi a maior coleção de insultos"

A ligação do cartoonista ao <em>Expresso </em>é quase tão antiga como o 25 de Abril de 1974. Mais de 25 anos depois do famoso Papa com um preservativo no nariz, já sem ilusões sobre uma carreira internacional, António viu-se envolvido em mais uma controvérsia. Desta vez no <em>The New York Times</em>, com Trump e Netanyahu como visados. <em>(Artigo publicado originalmente a 14 de setembro de 2019)</em>
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António para os leitores, António Antunes na vida civil. O seu olhar artístico faz parte das páginas do Expresso desde 1974, com um ano de interrupção, em 1979, quando desenhou para O Jornal. Em paralelo trabalhou em artes gráficas, tendo em 1980 criado o ateliê de design gráfico Arte Final. Os portugueses reconhecerão algumas das suas criações, como os pacotes dos cigarros Português Suave e Surf ou das cigarrilhas Real Feitoria. A empresa está sem atividade, mas é aí que António mantém o seu local de trabalho. Aos 66 anos, este símbolo do Expresso tem o seu talento imortalizado na estação de metro do Aeroporto e numa estátua de Álvaro Guerra (o seu primeiro chefe de redação, do República), em Vila Franca de Xira.

O desenho com Netanyahu e Trump fez que o The New York Times deixasse de publicar cartoons políticos na edição internacional. A sua colaboração era só com o NYT?
Houve um equívoco. Nos anos 1980 tive um acordo com uma agência de distribuição, a Cartoonists and Writers Syndicate de Nova Iorque. Jerry Robinson, que tinha sido cartoonista e criou a imagem do Joker [personagem do Batman] fez o Views of the World, que reunia 50 cartoonistas de todo o mundo, exceto americanos. Entrei na seleção e nessa altura tive alguns sonhos. Pensei em fazer mais política internacional. Quando veio o pagamento o sonho caiu ao chão e houve um barulho do sonho a partir-se todo. O pagamento era simbólico. Adotei uma posição mais defensiva, ou seja, continuei a enviar desenhos quando tinha, não os fazia de propósito. O Syndicate editava uma página grande em couché, com muito boa qualidade, que enviava aos jornais assinantes, os quais picavam o que lhes interessava. Eu só recebia por entrar na folha.

Era indiferente ser publicado por um ou por dezenas de jornais?
Pois, o que era uma vigarice. Fui desativando lentamente até que desisti daquilo. No entanto, o senhor morreu e aparece um filho, James Robinson, que faz o syndicate sucessor do outro, Cartoon Arts International, que apanhou os meus desenhos, ainda hoje não sei como, e vendeu ao NYT. Há 20 anos que não envio desenhos para os Estados Unidos. Depois há a história conhecida de o NYT retirar o desenho. Recebi a maior coleção de insultos até hoje. Tive de ficar calado porque não queria tirar o centro da história. Só agora que já resolvi a questão é que falo dela. A determinada altura houve uma troca de e-mails entre a direção do Expresso e o NYT e que fala não só desta questão, mas também da utilização do desenho sem mencionar a origem, e eu pego na troca de e-mails e peço explicações ao Sr. Robinson. E entre uma luta legal nos EUA e aceitar ser pago resolvi aceitar.

E em relação à atitude do The New York Times?
É grave. É um exemplo do estado das coisas. Há uma viragem clara à direita na política, uma pressão nova das redes sociais e uma pressão de outro produto originariamente americano, mas que se vai alargando, que é o politicamente correto. Depois há outra coisa que ganha outra força nas redes sociais que é a atitude dos judeus em relação a qualquer crítica a Israel. De gente culta que acaba por cair no primarismo de dizer que é um desenho antissemita. Não é nada, é um desenho antissionista, que é outra coisa, é uma crítica a um homem de que metade ou mais de metade da população de Israel está contra, Netanyahu. Esta confusão é grosseira mas propositada, fui vítima disso.

O momento de viragem da perda de espaço da liberdade de expressão começou com os cartoons de Maomé?
É o primeiro sinal. Na altura participei num Prós e Contras com o bispo do Porto e o xeque da comunidade islâmica. Havia sagrados que não podiam ser tocados e a responsabilidade dos cinquenta e tal mortos era dos desenhos. Não era dos energúmenos que mataram, era dos desenhos. E quando digo há uns sagrados, não falo por acaso, essa foi a expressão do senhor Clemente, o atual patriarca de Lisboa. Ou seja, a Igreja Católica, que está numa situação menos ofensiva do que a islâmica, apanha a boleia. Mais tarde participo num segundo debate sobre o Charlie Hebdo. Sem o cardeal, mas com o xeque, a tese foi a de que houve um crime horrível, mas no fundo estavam a pedi-las. São sinais. Também houve sinais positivos, a sociedade francesa reagiu em força e no número a seguir compraram sete milhões do Charlie Hebdo, dando um sinal de que querem manter a liberdade de expressão acima de tudo, apesar de a grande maioria não concordar com a revista. Há uma máxima dos franceses que é preciso reter: nós temos o direito a rir de tudo. Nós viemos de uma ditadura encostada à Igreja Católica e eles tiveram uma revolução, cortaram com as igrejas, são anticlericais. O desenho do preservativo no nariz do Papa é um caso porque é o primeiro em que o Papa é criticado. Saiu em toda a Europa não como um desenho revolucionário, mas para demonstrar o provincianismo da nossa democracia, que levava um desenho daqueles ao Parlamento.

O cartoonista é um marginal?
Tem sido. Chateei várias vezes os dirigentes do Sindicato [dos Jornalistas] para que nos reconhecessem e dessem proteção no quadro do jornalismo. E isso acabou por acontecer. A maioria dos cartoonistas são freelancers. Os jornais têm vindo a perder espaço e alguns têm vindo a fechar, que é a forma mais radical de perder espaço. Os outros têm curas de emagrecimento. Começámos como marginais e acabamos como marginais.

Demora muito tempo a fazer o cartoon?
Sim, sim. Depois da ideia encontrada são dois dias só a executar. Não fui por um caminho que os mais novos foram, e que é natural, os computadores. Não fui educado com os computadores e sempre os tratei por você. Nada de intimidades. Mesmo num semanário há sempre a ditadura do fecho, tem de se entregar e acabou. E num meio que eu não domino bem ia dar-me um stress danado. Prefiro sujar as mãos como sempre sujei, com as tintas e os lápis, é mais autêntico. Utilizo o computador para digitalizar e para limpar uma coisa ou outra, pequenas manchas, tenho um colaborador que me faz isso. No processo criativo o computador não entra.

Há mais vida além dos cartoons?
Faço escultura de vez em quando, organizo coisas como o World Press Cartoon [agora nas Caldas da Rainha], o Cartoon Xira. Enquanto as coisas forem confortáveis para mim no jornal vou continuando. Esta é a minha vida. Só que tenho sentimentos um pouco contraditórios. Por um lado gosto muito, por outro lado é uma prisão. Tenho de fazer ginástica para ir uns dias de férias e não se notar que não estou cá. Se se dá um grande acontecimento na minha ausência alguém vai dizer "Este tipo anda distraído".

Consegue estar sem desenhar?
Não sou workaholic. Trabalho por objetivos, por prazos, por acordos, sempre com um fito. Não tenho gavetas cheias de originais. Vou de férias e levo canetas mas mais para escrever. No entanto, duas vezes por ano participo em salões só para desenhar, onde ninguém me conhece, para reencontrar o prazer do desenho pelo desenho. Em França e na Bélgica há este hábito do desenho ao público. Levo materiais que quase não uso na minha relação com os jornais, como canetas com depósitos de tinta. Ali é tudo engraçado, divirto-me e a minha sede de desenhar resolve-se aí.

É na infância que nasce o gosto pelo desenho.
Eu tinha alguma aptidão para o desenho e devo a uma professora de Desenho ter vindo para aqui. Porque os meus pais, como qualquer progenitor, não viam grande futuro nesta coisa das pinturas e desenhos e gostariam mais que eu fosse engenheiro ou coisa assim. Não tinha qualquer tradição artística na família. E a professora falou com o meu pai e convenceu-o de que o melhor era fazer-me a vontade. Sou um miúdo da província sem tradição artística na família e que vem para a grande cidade com tudo o que isso acarreta, de surpresa, de choque, de aventura.

O que o marca na Escola António Arroio?
A primeira coisa é o nível dos bons alunos. Já tinham noções de técnica, de composição, de estilo e eu era um miúdo da província, tive que dar o meu melhor para conseguir apanhar o pelotão. Depois foi a descoberta do caminho marítimo para o sexo feminino. Pela primeira vez eu estava numa escola mista... Arranjei paixões, namoros, amizades, amigos. No fundo passei a conhecer o sexo feminino como um sexo normal. Isso foi a minha melhor aprendizagem nas relações com o sexo feminino.

Que estaria em minoria na escola?
Pelo contrário. Havia naquela altura uma coisa muito burguesa, uma boa parte das meninas fazia parte de um cliché cultural, a pintura, francês, ballet e piano. Numa boa parte delas isso não correspondia nem a vocação nem a talento. Havia gente muito rica, da qual aliás eu me servia de alguma maneira. Oferecia-me para fazer os desenhos em troca de material. Corria o risco de os meus pais não me acreditarem, porque aquilo era caro. Fazíamos algum experimentalismo na altura e havia grandes levas de material. A única forma de resolver aquilo foi oferecer os meus serviços de desenho em troca do usofruto dos materiais.

E que professores o marcaram?
Dorita Castel-Branco e João Vieira. Eram muito modernos para a altura, o João Vieira tinha vindo de Paris onde fora bolseiro. Vestia de forma moderna, era arejado e nada ancien régime. E a Dorita era uma força da natureza, além de muito bonita. Muito talentosos os dois.

O que o inspirou a passar para as caricaturas e as tiras?
Na altura pairavam coisas no ar. Sentia-se que o regime estava a dar as últimas. Como qualquer jovem queria fazer parte daquilo, mas como? Mesmo que fosse um grande pintor, o que era absurdo e improvável, as obras passariam a ser de quem as comprava e não teriam significado social. A escapatória eram os jornais, que multiplicava o desenho por milhares.

Como é que dá o salto para os jornais?
É quase um acaso. A dada altura tinha uns contactos na Bélgica e andava a fazer umas tirinhas no sentido de as enviar para lá. E ao mesmo tempo, eu fazia os cartazes para os concertos comício na Cooperativa Alves Redol, com os autores da oposição, em Vila Franca de Xira. Eram uns quatro ou cinco que eu fazia com caneta de feltro e que se punha nas lojas dos oposicionistas. Um dia, não sei porquê, resolvi caricaturar o convidado, que era o José Jorge Letria. Além de ser autor e cantor, trabalhava no jornal República. Ao ver o cartaz, desafiou-me a enviar material para o República. Eu aportuguesei um pouco as tiras que estava a pensar enviar para a Bélgica, fiz uma coleção e deixei no jornal.

Entregou os desenhos antes ou depois do 25 de Abril?
Antes, muito pouco antes. O meu primeiro desenho sai no dia do golpe falhado das Caldas, 16 de março. Uma data que não esqueci. E nesse dia sai "Desenho de" e um espaço em branco. Eu não tinha deixado telefone, nada. O chefe de redação era o meu conterrâneo Álvaro Guerra, que me conhecia e disse: 'Não sei com que nome ele quer assinar, mas é António'. E ficou. Também não tinha pensado muito nisso. Saía semanalmente no suplemento de sábado, que era um pouco o concorrente de A Mosca, do Diário de Lisboa. Entrentanto entro na tropa no dia 23. Costumo dizer que fui o homem que fez a diferença (risos). Tinha começado um mês e pouco antes e depois perdi a embalagem, com a recruta parei. Retomo mais tarde, ainda em 1974, porque vim para Lisboa. Fiz a especialidade na Polícia Militar, na Ajuda. Andei um pouco na rua como Polícia Militar, que na altura era a que fazia tudo. A GNR e a PSP estavam conotadas com o anterior regime e não se metiam em nada. Entretanto houve uma vaga no gabinete de estudos do quartel e passei a ser um polícia de estirador, numa sala de desenho. Voltei a fazer desenhos porque tinha tempo e meios e passei-me para o Expresso. Lembro-me de apanhar um jipe dos meus colegas para me levarem ao Expresso. Vinha de Lanceiros em marcha de urgência e fardado para entregar um desenho na Duque de Palmela.

O António é de Vila Franca de Xira. Tem alguma ligação às tradições tauromáquicas?
Sim, enquanto andei lá gostava de ver as esperas. Havia alguma adrenalina com os touros na rua. Foi o máximo de adesão que tive, mas nunca fui propriamente um aficionado. Hoje não me importo de ir e já tenho levado alguns colegas estrangeiros de visita. Sou um bocado agnóstico. Vai acabar, sente-se que vai acabar, de ano para ano vai perdendo militantes. Também a criação de gado se alterou, os grandes agrários, etc., a tendência é para acabar.

Que opinião tem da militância antitourada?
É um bocado hipócrita. Por duas razões. Primeiro porque não vejo a mesma militância em relação a outras coisas que causam sofrimento aos animais, nomeadamente a caça, por exemplo. Por outro lado, o touro bravo só pode subsistir com a festa. Ou seja, o criador de touro bravo precisa de espaço. Depois o touro bravo se chegar aos 600 quilos é uma coisa fantástica, normalmente não chega lá. Para carne há raças que atingem muito mais do que isso, como a charolesa ou a limousine, que andam nos 900 quilos. As vacas para o leite também não são grande coisa. Portanto só a receita que se tira da festa mais a que se retirará no fim é que permite aguentar aquilo. Mais a questão de que não é um touro de estábulo, é um touro que precisa de espaço. Quando acabar a festa vamos ver o touro bravo no jardim zoológico. É inevitável. O amor aos animais também tem este lado. É como agora o PAN dizer que os canis não podem matar cães saudáveis. Os canis não têm capacidade para albergar os cães e depois criam-se matilhas que começam a atacar. São coisas aparentemente corretas, mas que não têm que ver com as condições objetivas, não têm viabilidade prática.

(Artigo publicado originalmente a 14 de setembro de 2019)

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