Democracia natural versus inteligência artificial
É urgente refletir sobre o futuro da democracia quando a tecnologia digital está a dar mais um novo e radical salto. Em Portugal, uma boa oportunidade pode-se aproveitar o festejo da Revolução dos Cravos, marca histórica de sua redemocratização, que este ano se deu com a visita do Presidente brasileiro, ainda mais por Luís Inácio Lula da Silva ter sido eleito justamente no meio de uma guerra de desinformação, sobretudo em redes sociais, de proporções épicas. Que não seja mera coincidência de datas, de pessoas, de agenda de viagens. Melhor será tirar um sinal de alerta e de ânimo renovado para usar a inteligência natural à democracia para enfrentar o obscurantismo artificial movido pelas novas formas e personagens do autoritarismo e fascismo.
Aliás, um humano ou um chatbot escreve este artigo? A dúvida marca bem que o novo avanço no campo da inteligência artificial já está a promover uma revolução. Novos negócios surgem. Produtividade dispara. Postos de trabalho são eliminados ainda mais rápida e intensamente. Sim, novas profissões surgirão, mas não se sabe quais e nem quando. Mera bravata é pedir para suspender o trabalho de algo intangível, que não se localiza e vigia como central atómica. Se os impactos já estão a ser antecipados, ainda se discute pouco como regular, limitar e condicionar esse novo mundo.
Para se ter uma moderna e correta regulação pública, por si só, cabe preservar e atentar para algo essencial a ser também moldado e afetado por novas tecnologias, hábitos e vidas: a democracia. Esta é natural, legítima, real, por natureza. Por mais inteligente que seja um chatbot, não tem como se fazer passar por algo democrático sem o ser.
Lançar mão de uma inteligência democrática será imprescindível para enfrentar e equacionar os inúmeros e complexos desafios, que vão desde a destruição de empregos (e agora dos mais qualificados) até a simulação mentirosa, mas perfeita, de imagens e áudios imputados a autoridades, políticos e a qualquer um. Regras, vedações e sanções terão agora que migrar do mundo real para o virtual.
É uma missão que parece quase impossível. Ora, se todos antes rejeitavam a mentira factual e puniam o mentiroso, infelizmente muitos têm sido seduzidos por algoritmos de redes sociais e passam a aceitar como verdade suprema aquilo que coincide com suas crenças, por mais irreal ou descabido que seja. Na era da pós-verdade, a chamada guerra cultural passou a dominar as eleições da atualidade.
Na história da democracia, da mesma forma que se estendeu o direito de voto para mulheres, para os de qualquer cor, para os que não trabalham, agora será preciso mudar novamente as regras para assegurar a livre decisão de um eleitor autêntico e não de uma forma de marionete operada digitalmente. Os impactos serão muito diferentes, em diferentes realidades do mundo. Nos países mais desiguais e mais informais, será mais urgente buscar novas formas de trabalhar face à arrasadora destruição de empregos provocada pela IA. Em países mais maduros, será preciso revisitar as migrações, seja dos jovens nómadas digitais bem formados, até aos trabalhadores menos qualificados e tornados quase escravos, sobretudo na agricultura. Em comum, são problemas que não mais permitem que se protele o debate e o equacionamento.
A democracia pressupõe participação. Agora, ela precisa migrar das ruas para as redes sociais. Os seus algoritmos escolhem a que grupo cada um pertence, tendo por base o sistemático rateio dos seus hábitos. Na base disso, é autoritariamente escolhido o que lhes é oferecido, mesmo sem anuência dos destinatários. Ainda que todos e tudo estejam na rede mundial, não lhe é exibido o que o algoritmo decidiu que não lhe interessa, de modo que resulta muito limitado o seu direito de informação e, sobretudo, de participação. É preciso recompor o direito natural de um indivíduo escolher em que grupo e em que lutas deseja se integrar. Isso exige impor limites e, sobretudo, responsabilidades, pessoais e empresarias, civis e até criminais, a quem dita e comanda o conteúdo e o uso dos algoritmos.
Algumas iniciativas estão em curso, mas ainda de forma tímida. Sim, no Brasil, tramitam projetos no Congresso e ações na Justiça. Sim, nos Estados Unidos, se julga a responsabilidade de rede social que divulgou vídeos de ódio que influenciaram mortes no ato terrorista do Bataclan, em Paris. Sim, outros debates acontecem em outros países e fóruns. Não. É muito pouco. Se uma fábrica de alimentos ou um mercado é responsabilizado, caso venda produtos estragados, por que o dirigente de um veículo de rede social não pode submeter-se ao mesmo rigor, se deixar circular algo viciado e distorcido? Se não foi ele que postou a notícia ou a imagem distorcida e insultuosa, cabe-lhe a ele evitar que seu produto seja contaminado, do mesmo modo que aquele fabricante recorre a embalagem e a técnicas que impedem que o alimento que produziu venha a ser contaminado. Enfim, a racionalidade, os direitos, as regras e os rigores do mundo físico precisam ser transpostos para o mundo virtual - que não se fez antes, porque ainda não existiam.
Por trás da própria tecnologia repousa um eleitor que precisa ser protegido, como o de um alimento industrializado. A fábrica da democracia precisa assegurar que a natural liberdade de expressão se sobreponha e molde a inteligência artificial, e não o inverso, tornando-se desta uma marioneta, em escala digital.
Não há solução fácil para problemas complexos. Precisamos de mais atenção e mais debate para o resgate das bases da democracia e para as moldar à era digital. No tempo das carruagens, não existia semáforo, nem passadeira para peões. Mas, já havia crime em exceder-se na velocidade, inclusive a cavalo - o que levou à prisão o presidente norte-americano Ulysses Grant. Da carroça até o automóvel, é crime atropelar alguém na rua, propositadamente. Talvez agora precise acrescer a lei que também constitui crime quem atropela em redes sociais.
A urna eletrónica brasileira é um reconhecido sucesso internacional, nela se vota e se apura mais de uma centena de milhões de votos com precisão e em poucas horas. Este é um caso em que a nova tecnologia fortalece a democracia. Se a enfraquece com desinformação e manipulação, é preciso mudar, com a mesma inovação e coragem dos portugueses que colocaram cravos vermelhos no cano das espingardas dos soldados no 25 de Abril de 1974. Nesta data, como nos dias das eleições, os luso-brasileiros sempre fazem uma festa, com alegria e respeito, sobretudo aos que pensam diferente. Que nos estimule a debater e nos ilumine a construir soluções como cravos digitais para consolidar e ampliar a democracia nos dois países e no mundo.
Vitalino Canas é presidente da associação sem fins lucrativos Fórum de Integração Brasil Europa - FIBE, doutor em Direito e especialista em Direito Constitucional.
José Roberto Afonso é vice-presidente do FIBE, economista, professor e consultor com experiência em Renda e Tributação.