De uma prisão no Malawi para as nomeações aos prémios Grammy
Uma canção fala da inveja dos vizinhos. Outra conta como três irmãs se tornaram assassinas. Uma música aconselha os mais novos a dar ouvidos aos mais velhos e sábios. Outra fala dos temores de um pai em relação ao futuro do filho. As canções, muito pessoais, são escritas e interpretadas pelos detidos de uma prisão em Zomba, no Malawi. Foram gravadas ali mesmo, entre as grades, e reunidas no álbum I Have No Everything Here, que conseguiu uma nomeação para um Grammy na categoria de World Music, ao lado do brasileiro Gilberto Gil ou da indiana e filha de Ravi Shankar, Anoushka Shankar.
Esta foi a primeira vez que um músico do Malawi foi nomeado. O vencedor, conhecido há uma semana, acabou por ser a cantora do Benin Angélique Kidjo, nas nem por isso os presos ficaram desanimados: "Pelo menos, pusemos o Malawi no mapa", comentou Dinizulu Mtengano, diretor-geral das prisões. E aproveitou para pedir: "A melhor recompensa para eles seria uma amnistia, para poderem ir para casa, estar com a família." E, quem sabe, continuar a carreira musical.
Música em prisão sobrelotada
Foi no verão de 2013 que o produtor musical norte-americano Ian Brennan e a sua mulher, a fotógrafa e documentarista Marilena Delli, viajaram até ao Sul do Malawi para conhecer e gravar a música dos prisioneiros de Zomba. Na sua busca por músicos desconhecidos, o casal já tinha estado em países como o Ruanda, o Sudão do Sul, a Palestina ou a Argélia, entre outros. Mas este era um local especial: a prisão de Zomba foi construída em 1895, quando o país era uma colónia britânica, para albergar 340 pessoas. Neste momento estão lá mais de 2400 detidos. É um local sujo e com poucas condições.
O diretor da prisão permitiu-lhes o acesso ao espaço em troca de uma série de aulas de prevenção da violência entre os guardas e os prisioneiros, um tema no qual Brennan é especialista: desde 1993 já publicou quatro livros e dá cursos em vários países.
Veja um pequeno filme realizado por Marilena Delli na prisão:
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A maioria (85%) dos prisioneiros de Zomba são pobres e iletrados, explicou Mtengano ao The New York Times. Muitos são verdadeiros criminosos, outros são vítimas do sistema judicial do Malawi, até porque a língua principal do país é o chichewa mas os procedimentos jurídicos realizam-se em inglês e nem sempre há tradutores. A maioria cumpre pena de prisão perpétua, por crimes que vão do roubo ao assassínio, mas também acusações de feitiçaria e homossexualidade.
Nada disto impediu Ian Brennan. "A música é universal. Existe em qualquer lugar e é essencial para a sobrevivência espiritual", diz. A grande dificuldade é encontrar esses músicos e mostrá-los ao mundo. "É inacreditável como centenas de milhares de músicos de cidades como Londres, Los Angeles ou Nova Iorque são ouvidos há décadas, enquanto há países que não têm nenhum disco lançado internacionalmente. São completamente invisíveis."
Problemas tornados canções
"Por favor, não matem o meu filho", canta Thomas Biamo. No seu tema fala de um crime que é comum no Malawi: "Algumas pessoas ficam invejosas e decidem matar os filhos de outra pessoa sem qualquer motivo." Biamo tem 42 anos e é guarda na prisão de Zomba há 20. O guarda, que tem a sua própria banda fora da prisão, foi um dos maiores incentivadores do projeto. Em 2008 começou a ensinar música a alguns dos detidos, arranjou-lhes instrumentos e criou um estúdio onde podiam ensaiar. Ao início, o objetivo era fazer canções cuja mensagem estava relacionada com a prevenção da sida.
Ouça o tema Please Don't Kill my Child:
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"Há uma diferença estrondosa entre as alas feminina e masculina. Os homens tinham organizado uma banda e sabiam exatamente como queriam gravar. Por outro lado, as mulheres, que são um grupo menor, não tinham instrumentos - com exceção de umas baterias feitas com baldes - e diziam que não tinham canções", contou Brennan. Porém, assim que começou a conversar com elas, o produtor percebeu que teria ali muito bom material. "Sempre gostei de cantar por isso decidi arriscar", contou Gladys Zinamo, de 34 anos. A sua canção, intitulada Taking My Life, fala de como ladrões levaram tudo o que ela tinha em casa depois de ser detida, em 2010.
Em Zomba, Brennan gravou durante dez dias mais de seis horas de música com mais de 60 músicos, incluindo alguns dos guardas. Os homens gravaram num estúdio improvisado numa oficina automóvel, as mulheres gravaram no pátio, onde passam a maior parte do tempo. Depois, o material foi misturado pelo irlandês David Odlum no seu estúdio, Black Box, em França. O álbum do Zomba Prison Projet, I Have No Everything Here, foi lançado em 2015 pela Six Degrees Records, com 20 temas interpretados por 16 cantores, na sua maioria usando o dialeto local. "Foi simplesmente lindo, para mim foi uma experiência única", contou Brennan ao The Guardian.
Fronce Afiki, de 25 anos, a mais nova participante no disco, foi, entretanto, libertada. Vive com os filhos e continua a compor e a cantar. Na sua última canção, dá um conselho às raparigas: se tiverem algum talento, como saber tecer ou tocar um instrumento, devem seguir o seu sonho em vez de se contentarem em arranjar um marido. Quem sabe, talvez um dia, como ela, cheguem aos jornais de todo o mundo.