De subversivos e degenerados,os pilares da beat generation

Kerouac, Ginsberg e Burroughs, as múltiplas artes e distintas latitudes do movimento no Centro Pompidou, em Paris.
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Nenhum movimento cultural, artístico, literário, social traz afixada uma data de "início de atividade" nem consegue precisar um dia certo para a extinção. Muito menos isso poderia pretender-se com as manifestações da beat generation, hoje vistas como decisivas na transição entre as duas metades do século XX, precursoras de muito do que se seguiu, contestatárias do estabelecido, excessivas e radicais para alguns, ingénuas e inconsequentes para outros. Pouco haverá de mais difícil do que o julgamento, mesmo mais século volvido sobre as grandes ondas de choque provocadas pelos agentes mais destacados de um coletivo que, paradoxalmente, sempre primou pelo individualismo: mas, mesmo assim, a exposição agora inaugurada pelo parisiense Centro Pompidou, que pode ser visitada até 3 de outubro e que multiplica iniciativas fora das 15 salas que o museu lhe reserva, permite um olhar aprofundado e abrangente sobre as motivações e as formas de uma geração que fez da mudança o seu modus operandi. Nem que essa mudança significasse um regresso a verdades ancestrais.

Um dos paradoxos de raíz associados à beat generation - designação que terá nascido de uma conversa entre Jack Kerouac e Herbert Huncke, um dos poetas "da causa" - fixa-se, logo à partida, nas suas origens: o movimento, que se apresentava como alternativo, anticonformista e geracional (no sentido de congregar uma certa juventude, letrada e em busca de uma "nova visão"), parece ter lançado as suas sementes no terreno delimitado de um campus universitário. Em 1944, a Universidade de Colúmbia acolhia, em simultâneo, Kerouac, Allen Ginsberg, Lucien Carr, Hal Chase e vários outros discentes, porventura menos interessados nos currículos clássicos do que em desbravar novos caminhos na expressão e nos comportamentos. Os estudiosos costumam, inclusivamente, citar os professores Lionel Trilling e Mark Van Doren como catalizadores do que se seguiria, uma vez que personificariam aquilo que os alunos queriam mudar.

"Fora da caixa"

Daí em diante, a história documenta os princípios fundadores da beat generation: no campo literário, uma recusa categórica dos modelos estandardizados para as narrativas; no campo religioso, uma busca prática pelas religiões orientais e, também, pelas crenças e pelos rituais dos índios norte-americanos (hoje polidamente referidos como "americanos nativos"); no domínio filosófico, a rejeição linear do materialismo, algo que haveria de estender a influência destes homens ao movimento hippie da década de 1960 (e 1970); no domínio comportamental, a procura de retratos "explícitos da condição humana", que incluíam o desejo da experimentação de drogas psicadélicas e a liberdade - ou revolução - sexual. Hoje, tudo isto pode parecer vago e pouco sólido. À época, valeu aos seus subscritores prisões (Ginsberg), processos judiciais (Burroughs) e o desprezo de uma intelectualidade mais conservadora.

Regra geral, na ausência de um manifesto que declare intenções, explicite métodos e defina o alcance, costumam apontar-se à beat generation três sinais "fundadores": o poema "Howl", escrito por Allen Ginsberg e apresentado em 1956, sendo depois sujeito a um julgamento (no sentido literal) por "obscenidade"; o romance Pela Estrada Fora, de Jack Kerouac, lançado em 1957, com críticas mistas, mas que haveria de prolongar a sua influência por décadas e de a alargar a múltiplas disciplinas; o livro Refeição Nua, de William Burroughs, apresentado em 1959, que consagra a já referida alternativa à "narrativa tradicional", com uma série de vinhetas que se sucedem, com a personagem de William Lee (tangente ao autor) a contar as suas experiências, com drogas inclusivamente, em várias frentes. Destes três vértices, a beat generation expandiu a sua área de influência à fotografia e à pintura, ao cinema e ao teatro, a ponto de, até aos nossos dias, chegarem sintomas da aproximação de grandes criadores à "ideologia" concretizada - mais do que teorizada - pelo movimento: do pintor Jackson Pollock ao fotógrafo Robert Frank, muitos são os que passam por aqui. Ou perto disso.

Fora "de casa"

Robert Frank, hoje com 91 anos, é, de resto, uma das personalidades que marcam presença na exposição do Centro Pompidou, que não esquece o carácter nómada da geração retratada - "pela estrada fora" vale mais do que um simples título -, abrindo espaços para Nova Iorque, São Francisco e... Paris, onde os homens da beat se juntaram algumas vezes. Isto sem esquecer, por exemplo, as viagens até Tanger, Marrocos, onde Paul Bowles servia de anfitrião.

Filmes documentais alusivos à época, fotografias (voltamos a Frank e à presença do ciclópico trabalho que fez com The Americans, a sua obra mais celebrada), entrevistas filmadas e gravações sonoras de poesia declamada pelos "cabeças de cartaz", roupas e acessórios de Kerouac, mais o mapa que serviu de orientação a Pela Estrada Fora, uma máquina de calcular (!) de Burroughs, máquinas de escrever, gravadores, gira-discos portáteis, recetores de rádio, colagens fotográficas, pinturas, exemplares de primeiras edições, os longos rolos de papel em que tanto Kerouac como Burroughs escreveram algumas das suas obras, uma banda sonora muito marcada pela folk, pelos blues e obviamente pelo jazz (de Billie Holiday a Dexter Gordon, de Charlie Parker a Dizzy Gillespie), tudo é posto à disposição do visitante. Não falta sequer uma piscadela de olho a Bob Dylan - para muitos, uma "extensão" da beat generation -, que aparece, lado a lado com Ginsberg, numa visita ao túmulo de Kerouac, no filme Renaldo e Clara, realizado pelo autor de Highway 61 Revisited.

Em paralelo, complementando a exposição, decorre um vasto programa de colóquios, concertos, ateliês e workshops, visitas guiadas (aos locais parisienses onde os beat deixaram "pegada ecológica"). Que, entre outras vantagens, juntam mais esta: permitem a participação gratuita dos interessados. O que traz de volta uma das lições duradouras dos homens da beat generation, hoje talvez mais vivos do que nunca.

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