De pernas para o ar ou atirado pela janela. Tudo se faz a Santo António
Padroeiro da cidade não é (essa missão está com São Vicente), mas no papel de protetor dos namorados, dos maridos e de outras coisas desaparecidas tem direito a feriado e muita devoção. Como santo, o seu raio de atuação é de largo espetro. Protege amputados, animais, os que não podem ter filhos, idosos, grávidas, viajantes e marinheiros, militares, pobres e coisas perdidas. Incluindo o amor.
Já dizia, no século XVIII, o padre António Vieira, que os portugueses para tudo chamavam o auxílio de Santo António de Lisboa: "Se vos adoece o filho, Santo António; se vos foge o escravo, Santo António; se mandais a encomendas, Santo António; se esperais o retorno, Santo António; se aguardais a sentença, Santo António; se perdeis a menor miudeza da vossa casa, Santo António."
No Brasil, sobretudo em Salvador (e no resto do estado da Baía), a devoção faz parte da herança que os portugueses por lá deixaram - celebra-se anualmente nas festas juninas. A proteção a coisas desaparecidas vai dos namorados aos escravos. Era a Santo António que os senhores rezavam quando alguém fugia.
A fama de ser boa ajuda para encontrar o amor remonta ao século XIX e tem raiz no que se diz que era o talento do santo para reconciliar casais desavindos e proteger raparigas solteiras. Em 1937, quando edita o livro Santo António de Lisboa na Tradição Popular, Armando Mattos, historiador e diretor dos museus municipais de Vila Nova de Gaia, regista quadras, poemas e cantigas que nos mostram a importância do santo. Por exemplo:
O Santo António das Moças
Perdoa, seja a quem for;
Os delitos desta noite
Que se façam por amor
(...)
Ó Moças andem ligeiras
Vão pedir a Santo António
Que as ponha todas em linha
No livro do matrimónio
Milagreiro como poucos, os feitos de Santo António viraram expressões idiomáticas. Do "Santo António onde te porei" ao "está em todas as partes como Santo António", passando pelo "tirar o pai da forca", já que salvou o progenitor, condenado à morte por assassínio.
Quando na Igreja de São Julião, hoje Museu do Dinheiro, se fizeram as escavações arqueológicas, várias imagens de Santo António de pernas para o ar foram encontradas nos poços. Eram restos da cidade pós-medieval e a posição intrigava os especialistas - mas não os brasileiros que tomavam conhecimento da situação. Afinal, do outro lado do Atlântico, esta é uma das formas de o convocar. Isto é, de conseguir casamento. Os maus-tratos à imagem são comuns, em Lisboa e não só, quando os acontecimentos não correm de feição às raparigas. "Zangam-se com o santo e castigam-no", escreve Armando de Mattos em Santo António de Lisboa na Tradição Popular. "Tal e qual os romanos faziam às suas divindades, quando estas não acediam aos rogos."
Virado para a parede ou sem o Menino Jesus
Virar a imagem para a parede (como em Paderne), pendurá-la de cabeça para baixo (Porto), tirá-la do trono, esbofeteá-la ou atirá-la pela janela. Estas são outras práticas descritas no livro de Armando de Mattos. O historiador e etnógrafo relata uma história que lhe foi contada sobre uma rapariga do Porto que, irritada com o santo, o atirou da janela. A imagem atingiu um rapaz que passava e que precisava de ser socorrido. Fazem-no na casa da jovem e "vêm a casar os dois". Outra prática cruel a que as raparigas à procura de matrimónio podem submeter a imagem do santo é tirar-lhe o menino do colo. E, em Viana do Castelo, o etnógrafo Luiz Chaves testemunhou outro rito: as raparigas que queriam casar-se iam à Igreja de São Bento roubar o Santo António. O costume terminou quando os frades prenderam a imagem ao altar.
Mergulhar a imagem do santo na água é outro castigo conhecido. Neste caso, não tem tanto que ver com amor, mas com o desejo de que chova. A prática, porém, diz Armando de Mattos, era condenada desde 1514 pelas Ordenações Manuelinas, pelas Filipinas de 1595 e pelas Constituições dos Bispados de Évora (1534) e de Portalegre (1632).
Por Lisboa, a tradição é atirar uma moeda à estátua do Santo António no largo do seu nome. Diz-se que serve para quem quer encontrar o amor e para quem deseja manter um casamento feliz. Na hora de receber o tostão, o santo não discrimina necessidades. Em todo o caso, o lançamento requer habilidade. Para ser mais eficaz, a peça deve cair no livro que Santo António tem na mão.
Santo António está também ligado ao pão dos pobres, um costume que ultrapassou fronteiras e que, neste caso, nada tem que ver com casamentos ou com a busca pelo amor. A história começa com um frade padeiro que, ficando sem pão, vai ter com o santo em busca de auxílio. Quando Santo António lhe pede para verificar se realmente não havia pão, descobre cestos repletos do alimento, tanto que alimenta os frades e também os pobres que visitam o convento. Daqui nasceu, diz-se, o costume de ter nas igrejas uma caixa de esmolas destinada ao pão dos pobres. Noutra versão, em Toulon, França, em 1890, Luísa Bouffer tenta abrir a porta da sua loja sem êxito - nem com a ajuda do serralheiro. Prometendo dar pão aos pobres se conseguissem abrir a porta e cumprindo-se o pedido, Luísa passou a ter no seu estabelecimento uma imagem de Santo António - costume adotado por muitos estabelecimentos - e uma caixa para receber as esmolas do pão dos pobres. Cinco anos depois, conhecendo já o milagre, frei João da Santíssima Trindade e Sousa traz o costume para Portugal. Ficou até hoje.
Este artigo foi originalmente publicado na edição do DN de 11 de junho de 2019