De Moçambique não se regressa. A memória de uma reportagem

Testemunho de Dora Pires, repórter da TSF, dos bastidores no terreno, do que normalmente não se fala mas que se vê e se sente.
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Demora-se muito a voltar de Moçambique, até há quem não regresse nunca. Fui lá duas vezes, uma no mato, outra na cidade, à procura do que ficou depois do dilúvio. Duas vezes tentei regressar.

O primeiro sintoma tem que ver com água, quando, ao chegar a casa ou logo no aeroporto, se abre uma torneira... e sai água. Há uma sensação de milagre, uma vontade irresistível de beber pela concha da mão até não poder mais, até rebentar.

Depois é o primeiro duche. Por mais tempo que passe é sempre o primeiro, todos os duches são como o primeiro desde que voltámos de Moçambique. Um luxo, a sensação que se cola a tantos gestos quotidianos.

Carregar num botão pequenino que faz iluminar uma sala inteira, ou abrir a porta de um frigorífico, já para não falar no extraordinário conforto que é estender o corpo num lugar macio e plano como um colchão sobre uma cama. E é calçar e vestir, e é sobretudo comer, saciar, fartar.

Tudo tão fácil, tão cheia a nossa vida aqui. A perfeita noção disso faz-nos todos os dias felizes, várias vezes ao dia, de cada vez que comparamos, que nos lembramos, que repetimos o alívio que é ter tanto. Mesmo quando nada disto é consciente, fica impregnada alegria das coisas simples.

Mas também trazemos de Moçambique uma dorzinha. É verdade que vai atenuando com os dias, mas também há que dizer que fica sempre por aqui a rondar. É um grão de culpa, por ter nascido aqui e não lá, por não ter feito nada para estar tão melhor, por viver mais tempo, por ser mais feliz, em princípio.

Claro que nunca mais sabe tão bem um gole de cerveja gelada ao fim de um dia sufocante. Nem uma chuva tépida. Nem adormecer entre um coro de cigarras histéricas. Nem acordar às cinco horas da manhã. Faz-nos sempre falta regressar a Moçambique.

São aqui as Nações Unidas

O mundo faz fila para aterrar no Aeroporto Internacional da Beira. Do lado esquerdo da pista de aterragem fica a entrada para a sala coordenadora de ajuda internacional. São aqui as Nações Unidas. Como formiguinhas, cada uma com o seu plano secreto e urgente, há desfiles intermináveis de pessoas com ar determinado de quem vai salvar o mundo. Usam quase todas coletes com siglas, como fardas num campo de batalha.

Seria uma guerra complicada, com mais de cem exércitos em campo. Mas é ao contrário, são pessoas que fazem vida disto, que falam do sismo no Haiti, do conflito no Sudão do Sul ou do furacão Katrina como nós discutimos o novo preço dos passes.

Se nos sentarmos cinco minutos num cantinho, vemos passar o mundo inteiro: há dois israelitas, uma rapariga e um homem, ultrapassam três coreanos e ficam em melhor posição para chegar à máquina fotocopiadora; os nórdicos estão em força e formam a mancha loura junto à parede frontal que perdeu alguns vidros (por onde entram ainda de vez em quando as andorinhas que voltam para trás depois de uma volta rápida sobre esta balbúrdia humana), temos então a mesa redonda que tantos países já ocuparam e está agora por conta dos sul-africanos. São quase tantos os países como as organizações e como as nacionalidades dos jornalistas que se juntam ao caos.

Já estiveram todos juntos, os jornalistas e os trabalhadores humanitários, mas já não havia fichas elétricas suficientes, nem oxigénio para tanta gente no mesmo espaço. Agora há uma banca e um senhor "internacional" que bloqueia a entrada no que foi durante muitos dias o único local de Moçambique com ligação ao resto do mundo - com uma lâmpada fluorescente pendurada numa parede e um número mágico para aceder à internet, que funcionava boa parte do tempo.

Durante uns nove ou dez dias, Pedro Matos, o português do Programa Alimentar Mundial, quase sozinho foi tomando conta disto tudo aqui dentro, e lá fora na pista de aterragem, e ainda lá mais longe sobre o imenso lago em que a chuva transformou o centro do país.
Parece que todos faziam o melhor que sabiam, mas também parece que nunca chegou.

Fome com vista para toneladas de comida

Nem era preciso mais, bastaria que Monte Verde (o nome já era premonitório) ficasse numa pequena elevação. Ter-se-ia daqui, do acampamento, uma vista privilegiada. Centenas e centenas de pessoas poderiam assistir daqui, ao vivo, à chegada de tanta gente e de tanta ajuda.

As montanhas de comida crescem e desaparecem na pista de aterragem, enquanto no campo de deslocados das cheias aumenta o número de tendas e vai aumentando também o número e o tamanho dos tachos que servem as primeiras refeições.

Um dia depois da abertura deste campo, para devolver as escolas da cidade da Beira aos seus alunos, ansiava-se por comida, tanto quanto pode ansiar quem não come nada de jeito há onze dias. A comida é encaminha para a entidade do governo responsável pela operação, o INGC, Instituto Nacional de Gestão de Calamidades.

As más-línguas garantem que comida ainda pode chegar alguma, mas dinheiro nadinha, nem um cêntimo há de chegar à Beira, a província rebelde, a sede da oposição nacional ao poder de sempre, sobretudo agora com as eleições tão perto.

Será isso ou apenas a tão desmedida dimensão da catástrofe. A água não afogou só vidas e paisagens, sem estradas nem telecomunicações deixou os sobreviventes sem maneira de saberem uns dos outros. Só mesmo os muito, muito ricos, os que têm ou podem alugar um helicóptero poderiam ir à procura, e mesmo assim só isso, só ir à procura.

No centro de acolhimento quase ninguém sabe ler ou escrever, mas muita gente traz consigo um telemóvel, de modelos antigos é certo, mas são telemóveis nas mãos de pessoas que nalguns casos nunca tinham saído das suas zonas de origem, a muito e muitos quilómetros de qualquer cidade.

Pouca coisa poderá distrair alguém de uma fome de dias, mesmo os moçambicanos que têm muito treino, mas a ansiedade de não se saber do pai, do marido ou de um irmão consegue milagres. Explica-se assim o poder absoluto que se sente ao entrar neste espaço com um telemóvel e um carregador. Mas o poder depressa se torna pesado demais quando é preciso decidir como dividir a carga e quem vai ter de continuar na dúvida sobre se estão ainda vivos os familiares.

O consolo é que ao segundo dia no Monte Verde cheira a frango, e cheira muito bem. Finalmente há sorrisos. Foi pouco depois da visita de Graça Machel, para muitos ainda a matriarca.

As filas debaixo do sol escaldante encaracolam-se à volta da carrinha que carrega os panelões de arroz e os tachos-piscina de frango de caril. A organização não governamental World Central Kitchen foi contratada pela ONU para fazer até dez mil refeições por dia. Está a encher milhares de pratos por dia nos três centros de acolhimento que se transformaram em cidades-tendas dos deslocados das cheias. Há agora uma refeição por dia por pessoa, durante um mês.

Uma mulher muito velha carrega um prato a transbordar de arroz, anda com dificuldade mas não deixa cair um baguinho. Com ajuda de um tradutor voluntário explica que nunca provou, por isso não vai arriscar agora, nunca comeu frango.

Há polícia para conter um ou outro empurrão, há quem resmungue porque nunca mais consegue comer enquanto outros já repetem, debaixo de um toldo mais afastado. Mas é novo tudo isto, sobretudo o reclamar. Este frango foi temperado com dignidade.

Todas as águas são rios

O homem da Capitania do Porto da Beira não tinha razão. Gritou e esbracejou como se estivesse a testemunhar um crime que não podia impedir, a chuva torrencial e o céu negro desaconselhavam alto e bom som fazer uma viagem de tantas horas. Mas não tinha razão, afinal a chuva passou ao fim de algumas milhas e não só fomos até Búzi como voltámos.

"Uma embarcação artesanal de pesca", foi o nome consensual entre o pequeno grupo de jornalistas portugueses que decidiu alugar uma maneira de chegar a Búzi pelo único caminho possível, pela água. Um barco com uns sete ou oito metros de comprimento, todo de madeira, sem qualquer vestígio de tecnologia além dos dois motores, um suplente.

Nessa viagem vi um futuro diferente para Moçambique. Foi por causa do professor Hélder, que à custa de nunca desistir de arranjar argumentos, cada um mais emocionante do que o outro, lá conseguiu entrar no barco para levar à mulher e à filha pequena duas sacas de comida. A vila estava então isolada há uma semana e sem nada para comer ou beber.

Hélder trazia vestida uma camisola do Super-Homem, além da comida comprou uma lanterna a pilhas que deixou cair várias vezes no fundo do barco com água, porque tão depressa chovia torrencialmente como fazia um sol de cozer ovos. Passou a viagem a secar a preciosa lanterna e as ainda mais preciosas pilhas. Até que um dos homens a bordo tirou do saco de plástico, para carregar, uma espécie de lâmpada elétrica. O aparelho, de fabrico chinês, estava ligado a uma minicentral solar, pouco maior do que um palmo de mão e prometia não só dar luz como servir de bateria para carregar, por exemplo, telemóveis.

Moçambique poderia apanhar este rio e saltar um século.

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