De Klerk. Morreu o inimigo que se tornou parceiro de Mandela

Último presidente de um regime racista e primeiro vice do "país arco-íris", foi protagonista na transição para a democracia. A sua morte coincide com uma crise política.
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Vítima de cancro, morreu aos 85 anos Frederik Willem de Klerk, o último presidente duma África do Sul sob o regime do apartheid, para o qual contribuiu na construção e mais significativamente na destruição. O seu papel para a história terá de ser reavaliado à luz da sua mensagem final, um vídeo publicado de forma póstuma no site da sua fundação, e na qual, pela primeira vez, pede desculpa pelo regime racista, num momento em que a democracia nascida com Mandela e De Klerk se encontra na sua mais profunda crise.

As reações à morte de De Klerk espelham como a sociedade sul-africana convive de forma diversa com o passado. O líder do partido Combatentes da Liberdade Económica, Julius Malema, tuitou "Obrigado, Deus" com emojis a dançar. Além disso, o partido de extrema-esquerda reagiu de forma célere contra a possibilidade de um funeral de Estado.

Do outro lado da balança, o presidente da República da África do Sul e secretário-geral do ANC, o partido dominante desde as eleições de abril de 1994, preferiu destacar em comunicado o "papel crucial" na transição para a democracia. "Tomou a corajosa decisão de acabar com a proibição de partidos políticos, de libertar prisioneiros políticos e de entrar em negociações com o movimento de libertação no meio de fortes pressões em sentido contrário por parte de muitos no seu círculo político", recordou Cyril Ramaphosa.

John Steenhuise, o líder do principal partido da oposição (Aliança Democrática), não concorda com este elogio, ao afirmar que a contribuição de De Klerk para a transição para a democracia "não pode ser exagerada". No mesmo campo político, o seu antecessor, Tony Leon, comparou o papel de De Klerk ao de Mikhail Gorbachev no desmantelamento do regime soviético e afirmou que o seu país podia hoje ser a Síria ou a Venezuela se "não tivesse abdicado do poder".

Frederik Willem de Klerk nasceu em Joanesburgo em 1936, no seio de uma família descendente dos colonos holandeses e de huguenotes que chegaram à África austral no século XVII. O avô, também chamado Willem, era um orgulhoso afrikaner, tendo sido preso sob a acusação de traição pelos britânicos antes de se tornar membro fundador do Partido Nacional e ministro. O pai, Jan de Klerk, também foi ministro durante o governo de três primeiros-ministros e foi também presidente do Senado. O seu tio Hans Strijdom foi primeiro-ministro na década de 1950.

Sem surpresa, FW seguiu os passos familiares tendo chegado ao governo e pertencido à linha dura do mesmo. No entanto, em outubro de 1989, um mês depois de chegar ao poder, tendo sucedido a Pik Botha, decide libertar a referência política de Nelson Mandela, Walter Sisulu, e outros sete prisioneiros políticos. E em fevereiro de 1990 De Klerk anuncia a libertação de Nelson Mandela e a legalização do ANC, do partido comunista e das organizações associadas. O resto é história, uma história na qual Mandela e De Klerk conseguiram protagonizar uma transição pacífica e com a qual foram agraciados com o Prémio Nobel da Paz.

No entanto, a relação dos dois líderes foi mais encrespada do que as imagens sorridentes e os dois anos em que coabitaram na presidência e vice-presidência podiam levar a crer. "Para fazer as pazes com um inimigo é preciso trabalhar com esse inimigo, e esse inimigo torna-se no seu parceiro", escreveu Mandela na autobiografia Um longo caminho para a liberdade. E sobre o ex-inimigo afirmou: "Apesar das suas ações aparentemente progressistas De Klerk não era de modo algum o grande libertador. Era um gradualista, um pragmático cuidadoso. Não fez nenhuma das suas reformas com a intenção de se colocar fora do poder. Fê-las precisamente pela razão oposta."

No poder acabou por ficar o partido de Mandela, o ANC, desde 1994. O Congresso Nacional Africano viveu o seu pior momento nas eleições municipais que decorreram no dia 1. Apesar de ter sido a formação mais votada, ficou pela primeira vez abaixo dos 50 pontos percentuais (46%) num sufrágio marcado por um aumento da abstenção, que atingiu os 47%.

As eleições são mais um sinal da lenta erosão do ANC, minado pela corrupção - personificada em Jacob Zuma, o ex-presidente que se encontra preso - e pelas políticas que não conseguem oferecer soluções para o desemprego ou a falta de habitação. Em 2006 a confiança no ANC era de 62%, agora é de 27%, segundo o Afrobarometer, enquanto a dos restantes partidos não é melhor (24%). O presidente Ramaphosa, que fez campanha com promessas de reforçar as instituições e combater a corrupção, tem a confiança de 38% dos sul-africanos. E a maioria (64%) crê que a corrupção aumentou durante o seu mandato.

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