De "incrível" a "incompreensível": quando a teoria política dá lugar à teoria do caos

Nove meses de maioria absoluta, 13 demissões. Até mesmo os especialistas em Ciência Política têm dificuldade em encontrar explicações cabais para o que se passa no executivo. A continuar assim, já há quem veja eleições antecipadas no horizonte.
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António Costa chamou-lhe um governo mais curto, mais ágil, mas passados nove meses de governação a realidade veio demonstrar que o governo é sobretudo mais problemático. Duas demissões de ministros, 11 saídas de secretários de Estado e duas moções de censura depois, como se explica tamanha sucessão de polémicas e consequente rotatividade num executivo de maioria absoluta que nem um ano de governação cumpriu?

Até mesmo para investigadores de Ciência Política a primeira explicação é que... não há explicação. Incrível, incompreensível, dificilmente explicável, são alguns dos adjetivos usados para qualificar uma sucessão de acontecimentos que parecem enquadrar-se menos na Teoria Política e entrar na teoria do caos. "Chegámos a um ponto em que nem as aparências mínimas estão a ser defendidas", diz Viriato Soromenho-Marques.

"Parece que os ministros e o primeiro-ministro estão a fazer isto em part time. Dá vontade de perguntar qual é a outra profissão que têm, porque isto é de uma incompetência absolutamente inaceitável", critica, questionando "como é que é possível este amadorismo" no executivo: "É incrível. Nem num argumento de um filme de série B".

Para o professor catedrático de Filosofia Política o "discurso de António Costa mantendo sempre a ideia de que não se passa nada é inaceitável", como é igualmente "inaceitável o país ficar refém do partido a quem deu uma maioria absoluta".

E este não é um problema isolado ou circunstancial. Para Soromenho-Marques o que se tem passado no executivo "mostra a fragilidade de uma instituição que é fundamental para a democracia representativa, que são os partidos políticos".

"Estamos a falar do partido do governo e da forma como é feito o recrutamento [para o executivo]. No passado existia uma espécie de dupla fonte de quadros para o governo: por um lado pessoas da esfera técnica, da sociedade civil, os chamados independentes, e as pessoas do partido, de confiança política. Neste momento parece que estamos reduzidos a figuras deste segundo tipo", sublinha Soromenho-Marques, defendendo que "há uma reflexão que temos de fazer, como sociedade, porque a nossa democracia está numa situação de degradação".

Nas suas várias vertentes: "O debate parlamentar está muito pouco rico, as pessoas estão nas suas trincheiras... E tudo isto tem ajudado ao aparecimento de forças que estão num campo potencialmente não democrático, ou mesmo antidemocrático".

António Costa Pinto, investigador coordenador no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, considera que "não é facilmente explicável" a sucessão de controvérsias que têm assolado o executivo, até pela circunstância deste governo ter na origem "uma componente política mais forte" que executivos anteriores.

O que torna particularmente "irónicos" casos como o da ex-secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, chamada ao governo depois de ter recebido uma indemnização de meio milhão de euros da TAP (e de ter passado pela presidência da NAV, empresa pública responsável pela gestão do tráfego aéreo), num caso com a tutela de dois ministros "políticos" (Pedro Nuno Santos, que entretanto se demitiu, e Fernando Medina).

Uma situação que torna tudo ainda "menos compreensível" - "Veja-se o caso de Fernando Medina, é um dos ministros das Finanças mais políticos da democracia portuguesa, um ministro que não saiu de uma "bolsa" de tecnocratas independentes", como os seus antecessores, o que poderia explicar uma menor atenção a questões que, se outro problema não tiverem, são pelo menos um evidente problema político.

O mesmo é válido para o caso da secretária de Estado da Agricultura, Carla Alves, que se demitiu 25 horas depois de tomar posse, depois da notícia do Correio da Manhã que revelou que tem contas arrestadas partilhadas com o marido, onde terão sido depositadas somas superiores às declaradas nos rendimentos. "Alguém não avaliou bem", sublinha António Costa Pinto, lembrando que a ministra com a tutela da pasta, Maria do Céu Antunes, é um "quadro político, foi presidente da Câmara, secretária de Estado" e é membro da Comissão Política do PS - "o que torna a situação ainda mais incompreensível".

Para o investigador há dois pontos que podem ajudar a explicar o caminho conturbado dos últimos nove meses. Por um lado, a circunstância de o executivo formado no início do ano passado não ser "um governo novo, mas remodelado": "Quando ganhou a maioria absoluta, António Costa não fez um novo governo, fez uma remodelação governamental - era o governo da remodelação que não foi feita em 2021".

E, sendo um executivo de forte pendor político exigia um maior esforço de coordenação. "A inclusão de mais ministros políticos exigia uma muito maior coordenação do próprio primeiro-ministro e do seu gabinete", sustenta o politólogo, sublinhando que não há outra figura no elenco governamental com peso para desempenhar esse papel com eficácia. E este é precisamente o segundo ponto elencado por António Costa Pinto como explicação para os sucessivos casos no governo - a falta de coordenação.

Outro exemplo paradigmático: o caso do ministro da Economia, um independente "com dois secretários de Estado herdados do anterior governo", que redundaram na caricata situação de contrariarem publicamente declarações do ministro - e acabaram remodelados.

Para Paula do Espírito Santo, professora e investigadora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa, pode-se dizer que há um "pecado original" na formação do executivo, na medida em que há uma "limitação no plano das escolhas": "Tanto quanto podemos observar há um esgotamento das possibilidades de recrutamento político".

Uma circunstância a que se soma uma "surpreendente incapacidade de escrutinar melhor os perfis de quem vai para cargos executivos", como veio provar novamente, na última quinta-feira, a demissão relâmpago da secretária de Estado. Um caso que só pode ser visto com "perplexidade" e "incredulidade", depois de uma remodelação que "era uma ocasião excecional para virar a página", em que o primeiro-ministro "não podia voltar a perder a face, tinha que ser exemplar na escolha" e, em vez disso, o que acontece é uma repetição de uma "seleção política pouco sustentada".

"É difícil de explicar", diz a investigadora, sublinhando que esta sucessão de casos "demonstra incúria, incapacidade política e num plano técnico: quem tem de escolher não tem capacidade para fazer o mínimo, que é avaliar se aquela pessoa tem condições para exercer o cargo". "Ou tudo isto está a ser feito apressadamente e sem o devido cuidado ou há um excesso de otimismo de que a maioria absoluta, por si só, permite superar tudo", conclui Paula do Espírito Santo.

Para a investigadora não se pode afirmar, à partida, que os independentes são mais adequados a um cargo governativo do que aqueles que têm cartão do partido. A questão põe-se mais num plano da "ética, de transparência e isso é transversal" aos dois perfis. Mas é precisamente isso que tem faltado: "Há alguma incapacidade de as pessoas distinguirem o que é serviço público, o que é transparência das decisões, prestação de contas".

Já Adelino Maltez confessa-se "pessimista" e fala numa situação que se assemelha ao "pior de uma caricatura política do século XIX" - "Se calhar precisamos de estudar melhor o Camilo Castelo Branco".

"Entrámos em desleixo de regime e isto é péssimo", sustenta o politólogo, que aponta o dedo a uma "oligarquia política" que vive em "círculos concêntricos de subida" aos cargos de poder. "Há uma carreira nova em Portugal, que é começar como assessor, passar para adjunto, transformar-se em chefe de gabinete, subir a secretário de Estado. É o chamado funil da partidocracia dos partidos dominantes. Há aqui uma degradação no recrutamento político", sustenta Adelino Maltez, lembrando o que "aconteceu em alguns países onde o povo, a certa altura, varreu todos os partidos dominantes".

"Foi o que fizeram grandes democracias, ficaram fartos e reduziram grandes partidos a ultra minoritários. O eleitorado português nunca ameaçou o sistema e tem de ameaçar, os grandes partidos deviam ter medo de ser derrotados numas eleições. Os partidos funcionam melhor quando têm medo da opinião pública", sustenta, defendendo que a "ética republicana" tem de ser um "sustentáculo" da vida política e que a sucessão de casos que tem acontecido "torna inevitável outro recrutamento político".

Deste ponto vai um passo às críticas a António Costa pela solução que avançou na Assembleia da República, onde afirmou que iria propor ao Presidente da República a criação de um circuito para "garantir maior transparência e confiança de todos no momento da nomeação".

"Depois do navio meter água vai combinar com o Presidente da República como fazer um recrutamento melhor?", questiona Adelino Maltez, classificando a proposta do primeiro-ministro como um "exercício de demagogia".

Paula do Espírito Santo chama-lhe uma solução... "criativa": "Está a colocar o ónus da seleção e do escrutínio dos novos membros do Governo no Presidente da República. É discutível, até no plano do Direito e da configuração do nosso regime político, que é semipresidencialista".

Já Viriato Soromenho-Marques diz que o cenário que António Costa colocou em cima da mesa é "inaceitável". "Não faz nenhum sentido, é uma forma de desresponsabilização e de tentar tornar o Presidente cúmplice".

"A continuar, vamos mesmo ter eleições antecipadas"

Para Soromenho-Marques o que se passa com o atual Executivo "é uma situação semelhante, nos aspetos mais caricatos" ao que se passou em 2004 com o governo de Pedro Santana Lopes, que acabaria afastado por Jorge Sampaio. Um desfecho que não afasta no futuro: "A continuar assim, vamos mesmo ter eleições antecipadas. Mesmo sem saber quando, vamos ter".

Mas este é um cenário que deixa o país perante uma "situação dramática": "Não há alternativa a este governo. Neste momento não há nenhuma garantia de que, num cenário de eleições antecipadas, conseguíssemos uma solução sólida de governo. E o Presidente da República foi claríssimo nisso".

susete.francisco@dn.pt

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