De Gülen à mesquita gigante: os espinhos na relação de Erdogan com a Alemanha
Sete anos depois da última visita de Estado de um presidente turco à Alemanha e após anos de tensão entre ambos os países, Recep Tayyip Erdogan aterrou ontem em Berlim com o objetivo de deixar para trás o passado recente e voltar à relação privilegiada que já existiu entre as duas nações. Um tom bastante diferente do de há um ano, quando o presidente exortava os cidadãos alemães de origem turca a não votar na chanceler Angela Merkel por considerar o seu governo "inimigo da Turquia".
Num artigo de opinião publicado no Frankfurter Allgemeine Zeitung antes da sua chegada, Erdogan (que esteve na Alemanha em 2014, quando era primeiro-ministro) considerou "imprescindível" que Turquia e Alemanha abram "um novo capítulo" nas relações e "deixem de lado as discrepâncias" e os "temores irracionais" para se concentrarem nos "interesses comuns" e responder a desafios e ameaças como o terrorismo, o problema migratório ou o protecionismo dos EUA que leva o mundo a "guerras comerciais implacáveis".
São as questões económicas que estão por detrás desta aproximação. A Turquia enfrenta graves problemas financeiros, com o aumento da inflação, o desemprego e a debilidade da lira turca (cuja queda foi acentuada em agosto, após declarações do presidente norte-americano Donald Trump), e está à procura do apoio alemão. Por seu lado, à Alemanha não interessa que a Turquia se afunde mais (para continuar a travar a onda de refugiados e migrantes).
Mas apesar do intuito pacifista, Erdogan pede que Berlim considere como terrorista o movimento de Fethullah Gülen (que acusa de estar por detrás da tentativa de golpe de Estado em 2016) e vai inaugurar a mesquita de Colónia, cuja construção esteve envolvida em polémica e cujos imãs estão sob investigação por suspeita de espionagem a favor do governo turco.
Nesta sexta-feira, Erdogan é recebido por Merkel, dando depois uma conferência de imprensa conjunta, sendo depois convidado de honra num jantar com o presidente Frank-Walter Steinmeier, no qual a chanceler não vai estar presente. Vários deputados também recusaram o convite, em protesto, preferindo participar nas várias manifestações contra a sua visita que estão previstas. Amanhã, sábado, inaugura a mesquita.
A relação entre os dois países remonta a 1791, quando foi assinado o tratado de paz e amizade entre o Império Otomano e o Reino da Prússia, que deu lugar a uma importante cooperação militar, comercial e cultural. Depois, já num período de declínio do império, os otomanos ficaram do lado dos alemães na Primeira Guerra Mundial.
A derrota levou à ocupação de parte do território otomano pelos Aliados, culminando na guerra da independência e no nascimento da República da Turquia de Atatürk. Em 1941, os dois países assinaram um tratado de não agressão, mas quando a derrota alemã já era certa, em 1945, a Turquia declarou a guerra.
Após o conflito, devido à falta de mão-de-obra, as portas da República Federal da Alemanha abriram-se aos turcos. Atualmente, é a maior comunidade imigrante no país, com três milhões de pessoas - entre turcos e cidadãos de origem turca. Depois de um período de esfriamento das relações, o apoio do então chanceler Gerhard Schröder à candidatura da Turquia à União Europeia voltou a aproximar os dois países. Já Merkel é contra a adesão turca e isso deteriorou as relações.
Nos últimos anos, os problemas têm sido constantes entre os dois aliados da NATO, devido à resposta de Ancara aos protestos contra Erdogan na praça Taksim, em 2013, e ao tema dos refugiados. Em março de 2016, gerou-se uma crise diplomática depois de um humorista alemão, Jan Böhmermann, ter feito um poema satírico a insultar Erdogan - apelidava o líder turco de "grande chefe do Bósforo" e fazia referência a várias situações de desrespeito pelos direitos humanos.
Para piorar a situação, em junho, o Bundestag reconheceu o genocídio arménio às mãos do Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial.Ancara admite que muitos morreram durante o conflito, negando o genocídio, mas coloca as estimativas em 300 mil. A Arménia fala em 1,5 milhões de vítimas. "É uma decisão que irá ter um forte impacto nas relações entre os dois países", sublinhou então Erdogan, depois de votada a moção apresentada pelo partido de Merkel.
Em julho de 2016, Ancara criticou a falta de solidariedade de Berlim após a tentativa de golpe militar contra Erdogan, acusando a Alemanha de dar apoio aos seus inimigos.
O presidente turco acusa a organização do clérigo Fethullah Gülen, de 77 anos, de ser o mentor dessa tentativa de golpe de 15 de julho de 2016. Autor de dezenas de títulos, este sustenta uma leitura do Islão definida como moderada, advoga ao multipartidarismo e a livre economia.
A tentativa de golpe desencadeou a maior purga até hoje verificada na Turquia moderna. Estima-se que cem mil membros das Forças Armadas, do poder judiciário, funcionários públicos e professores, com ligações ao movimento Hizment (que significa serviço) foram despedidos e presos, com muitos diplomáticos, académicos e militares a fugir e a pedir asilo na Alemanha.
Ainda há cinco anos, Gülen era um dos principais aliados do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Erdogan. Na origem da rutura esteve uma investigação da polícia de Istambul, que acabou por levar à demissão de dez ministros, quatro dos quais acusados de corrupção. Desde o início, Erdogan, então primeiro-ministro, acusou Gülen de estar na origem da investigação para o comprometer.
A partir de 2014, Gülen - que desde 1999 se autoexilou nos EUA, onde vive numa enorme propriedade na Pensilvânia - e o seu movimento são rotulados de "terroristas". No artigo que escreveu antes de chegar a Berlim, Erdogan pediu ao governo alemão que reconheça que Gülen esteve por detrás da tentativa de golpe de 2016 - a Alemanha tem sempre dito que precisa de mais provas.
Berlim também criticou a postura de Erdogan em relação à purga - recusando extraditar vários militares turcos que se exilaram na Alemanha. E condenou a detenção de vários cidadãos com dupla nacionalidade alemã e turca, entre os quais jornalistas, na Turquia. Deniz Yücel, correspondente do jornal Die Welt, que esteve preso durante um ano por acusações ligadas a terrorismo, criticou a decisão da Alemanha de avançar com a visita de Estado, falando numa "traição aos que, na Turquia, desejam uma sociedade livre, democrática e secular".
Em março de 2017, várias localidades alemãs proibiram ministros turcos - e o próprio Erdogan - de estarem presentes em comícios organizados pelo governo antes do referendo de abril para mudar a constituição - que viria a dar mais poderes ao presidente. Erdogan acusou então a Alemanha de usar "táticas nazis", o que não caiu bem entre os políticos alemães.
Em agosto, um mês antes das eleições alemãs que deram uma vitória débil a Merkel, Erdogan tinha considerado a CDU e os outros dois grandes partidos alemães como "inimigos da Turquia", pedindo aos cidadãos de origem turca que vivem na Alemanha para não votarem neles - a chanceler reagiu, acusando o presidente turco de "ingerência" nas eleições.
Num dos debates eleitorais, Merkel defendeu que a Turquia não devia fazer parte da União Europeia e disse que iria falar com outros líderes europeus para travar as negociações para a adesão, tendo apoiado mais tarde a decisão de cortar nos fundos a Ancara.
Uma das últimas polémicas, envolveu o futebolista Mesut Özil. O futebolista do Arsenal deixou a seleção alemã depois de ter sido criticado por ter sido fotografado com Erdogan em julho. Özil disse ter sido transformado em bode expiatório após a fraca prestação da Alemanha no Mundial da Rússia (ficou na fase de grupos), precisamente pelas suas raízes turcas. O presidente saiu em defesa do futebolista, alegando que este foi vítima de racismo.
Curiosamente, já depois de Erdogan ter chegado a Berlim, a UEFA anunciou que o Europeu de 2024 vai disputar-se na Alemanha. A Turquia era o outro país candidato à organização do evento.
A visita de Erdogan inclui a inauguração da mesquita de Colónia, cuja construção esteve envolta em polémica e que na realidade já está a funcionar desde 2017. No ano passado, as autoridades alemãs lançaram uma investigação a vários imãs, por suspeita de que estariam a espiar os apoiantes de Gülen na Alemanha para o governo turco (a investigação acabou por ser encerrada sem acusações).
A mesquita de Colónia é a maior da Alemanha e da Europa (não contando com a parte europeia da Turquia), incluindo dois minaretes de 55 metros de altura e uma cúpula de vidro e cimento que parece uma flor a abrir. O desenho é do arquiteto Paul Böhm, que em 2011 abandonou o projeto, em desacordo com a DITIB (uma das maiores organizações islâmicas da Alemanha, fundada em 1984 e ligada à Presidência de Assuntos Religiosos, uma instituição oficial turca).
Esta foi uma das instituições que deu donativos para a construção da mesquita, financiada também por centenas de associações muçulmanas e por empréstimos bancários. No mês passado, o governo alemão disse que não iria financiar mais projetos com a DITIB, com os media alemães a dizerem que os serviços de informação estão a considerar uma vigilância permanente a esta organização (que é responsável por 900 mesquitas em toda a Alemanha).
A construção foi aprovada em 2008 pelas autoridades municipais de Colónia, apesar de o partido de Merkel ter votado contra. E houve vários atrasos não só pelo desacordo com o arquiteto mas também por alguns defeitos do edifício. E as portas deste local de culto - que inclui ainda uma biblioteca islâmica, lojas e zonas desportivas destinadas a incentivar a interação entre pessoas de diferentes credos - foram abertas durante o Ramadão de 2017, apesar de só agora ser inaugurada oficialmente.