De Davos a Genebra: do futuro à premência do presente

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Davos 2022 termina hoje. A reunião ocorreu de modo virtual, por causa da pandemia. Não assistimos, como já se tornara habitual, ao vaivém de um grande número de aviões particulares, com os poderosos deste mundo a convergir para a famosa estação alpina suíça. E a emitir vastas quantidades de dióxido de carbono.

Até 2020, ser visto em Davos confirmava que se fazia parte da elite global, fosse ela política, económica, académica ou jornalística. No ano passado, a covid-19 impediu a realização dessa grande manifestação de poder. Agora, tivemos uma reunião que passou praticamente despercebida. Mas não foi apenas a pandemia que lhe retirou a ribalta. A situação geopolítica na Europa concentrou as maiores preocupações durante a semana. Os temas em discussão em Davos - a pandemia e as desigualdades no acesso às vacinas; a transição energética; a revolução tecnológica e numérica, para citar apenas os mais importantes - foram totalmente ofuscados pelas jogadas de Vladimir Putin em matéria de segurança europeia.

Mas falemos um pouco de Davos 2022. A velha raposa que é o fundador e o patrão do Fórum Económico de Davos, Klaus Schwab, convidou Xi Jinping para pronunciar o discurso de abertura. Esse gesto foi devidamente apreciado pelo poder chinês. Schwab, que não dá ponto sem nó, reforçou assim as relações entre a sua organização e Beijing. E enviou, ao mesmo tempo, uma mensagem forte de reconhecimento da China como ator primordial na cena global.

Para não pôr todos os ovos no mesmo cesto, também pediu ao primeiro-ministro indiano que interviesse no primeiro dia do fórum. O contraste entre Xi Jinping e Narendra Modi foi flagrante.

O dirigente chinês procurou acima de tudo sublinhar o empenho do seu país como um contribuinte maior para a estabilidade internacional, contra o uso da força e pelo reforço do multilateralismo, da cooperação e da paz mundiais. Defendeu a globalização. Disse mesmo que a China é um porto seguro para o capitalismo internacional. Aproveitou ainda para atacar os Estados Unidos, que acusou de serem uma fonte de tensões, um país que se fecha sobre si próprio e cria obstáculos à recuperação económica dos países mais pobres.

Modi, ao invés, falou sobretudo para os seus concidadãos. Enalteceu os êxitos que a Índia tem conhecido nos últimos tempos, incluindo na luta contra a pandemia, na produção de vacinas e nas áreas tecnológicas e digitais.

A ambição da China é a de desempenhar um papel proeminente na cena Internacional. A Índia continua muito virada para os seus problemas internos. Modi quer, acima de tudo, transformar o país numa economia moderna e tecnologicamente avançada.

António Guterres fechou a lista dos primeiros oradores. Foi uma espécie de porta-voz dos países menos desenvolvidos. Esse é o único terreno que lhe resta para poder jogar com alguma segurança. Na sua intervenção, sublinhou as dificuldades que esses países têm encontrado para combater a pandemia. Defendeu a urgência de uma reforma do sistema financeiro global, para o tornar mais acessível aos países com poucos recursos, e insistiu nas questões do clima.

Enquanto tudo isto acontecia, a Europa e os Estados Unidos interrogavam-se sobre as intenções de Vladimir Putin no respeitante à Ucrânia e à NATO. Estas são questões particularmente urgentes, e de alto risco. Davos tem, quer se queira quer não, o mérito de levantar a frio grandes interrogações sobre o futuro. Mas, neste momento, a realidade na nossa parte do globo é bem mais quente e imediata. Putin continua a movimentar tropas para zonas próximas da Ucrânia e a ameaçar a estabilidade europeia. São incertos os resultados da reunião de hoje, em Genebra, entre Antony Blinken e Sergey Lavrov. Não creio que possam abrir um processo de diálogo. A parte russa parece querer mostrar que não fecha a porta diplomática, quando na verdade aposta na intimidação e na duplicidade. Aqui, é fundamental ter presente a lição aprendida em 1938, na conferência de Munique: apaziguamento sem concessões mútuas serve apenas para aguçar o apetite dos agressores de toda a espécie.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral adjunto da ONU

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