De Damasco a Koblenz: jurisdição universal para crimes internacionais  

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A 13 de janeiro de 2022, Anwar R., antigo coronel e membro dos serviços secretos sírios, foi condenado a prisão perpétua pelo Tribunal Superior de Koblenz por crimes contra a Humanidade cometidos na Síria. O Tribunal deu como provado que Anwar R. foi coautor de crimes de tortura e de violência sexual e, ainda, de vinte e sete homicídios, entre outros crimes. Estes crimes foram cometidos na prisão de Al-khatib, localizada nos arredores da capital do país, Damasco, onde, durante anos, cidadãos sírios foram torturados por forças secretas do regime do Presidente Bashar al-Assad. A prova feita em Koblenz apoiou-se amplamente em dezenas de milhares de fotografias e outros documentos extraídos do país por uma equipa de dissidentes e ativistas sírios, conhecidos pelo nome de código "César".

Poucos meses antes, a 30 de novembro de 2021, o Tribunal Superior de Frankfurt condenou o iraquiano Taha Al J. (na foto) a prisão perpétua por crimes internacionais cometidos em Fallujah, no Iraque, entre eles, pelo crime de genocídio. Naquela que foi a primeira condenação mundial pelo crime de genocídio cometido contra a minoria Yazidi.

Estes dois julgamentos, que decorreram nos tribunais nacionais alemães, na presença de ambos os arguidos, são expressões de uma renovada forma de enfrentar os mais graves crimes internacionais e, deste modo, enfraquecer a impunidade em casos de crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crime de genocídio e, até, crime de agressão, naqueles países que já implementaram este crime nos respetivos ordenamentos jurídicos nacionais. Crimes, muitas vezes, cometidos em situações de conflito armado ou de transição de regime que levam ao caos generalizado e à destruição dos mecanismos de investigação e ação penal nos territórios onde ocorrem.

Surge, assim, a questão: porquê nos tribunais alemães? Estes casos foram levados a tribunal com base no princípio da jurisdição universal para crimes internacionais, que estabelece - na sua versão mais abrangente, e aquela que foi efetivamente acolhida no primeiro artigo do Código Alemão de Crimes Contra o Direito Internacional de 2002 - que os tribunais nacionais podem julgar os mais graves crimes internacionais. O princípio assenta na ideia de que o bem jurídico Humanidade não conhece fronteiras. Consequentemente, qualquer Estado, sem que a soberania seja um obstáculo à justiça, poderá julgar estes crimes, independentemente da verificação dos critérios de competência dos tribunais, como, por exemplo, tratar-se do território onde ocorreram os factos ou ser o país de nacionalidade do autor ou da vítima. A aplicação deste princípio tem consequências práticas importantes para os sobreviventes de crimes internacionais, especialmente, naqueles casos em que há pouca esperança de justiça, quer em "casa" quer nos tribunais internacionais.

Surgem, portanto, novos atores na justiça internacional, as procuradoras e juízes nacionais. Com vista a melhorar a investigação destes crimes, a Alemanha criou, dentro da Procuradoria-Geral Federal, uma secção central especializada no combate a crimes de guerra e outros crimes internacionais cometidos em diversos territórios. Até à data tem sido dada especial atenção ao conflito sírio.

Na maioria dos casos, as investigações beneficiaram da estreita cooperação com autoridades estrangeiras, bem como com organizações não governamentais que, muitas vezes, já se encontram no terreno e são as primeiras a ter acesso aos locais onde os factos ocorreram e, por isso, fundamentais colaboradores na documentação de crimes internacionais.

Perguntamos agora: estão os tribunais nacionais preparados para julgar crimes internacionais? Numa reflexão sobre o julgamento de Anwar R., os juristas alemães e especialistas em direito penal internacional, Susann Aboueldahab e Fin-Jasper Langmack, apontam como principais falhas do julgamento a ausência de um programa de proteção de testemunhas e a inexistência de um plano de apoio psicológico para vítimas e sobreviventes, o que os expôs a riscos desnecessários, assim como o facto de não ter sido facultada tradução simultânea de alemão para árabe para o público durante o julgamento, apesar desta estar disponível para os arguidos. Acrescentam ainda que, apesar do notável trabalho de investigação e de análise dos juízes alemães, a verdade é que a dimensão político-histórica dos crimes em causa não foi devidamente apreciada. Por fim, é de notar que o julgamento não foi gravado, ao contrário do que acontece nos tribunais internacionais e também nos tribunais portugueses, o que revela uma falha do legislador alemão.

Assim, os novos fóruns de justiça penal internacional devem fazer as necessárias adaptações nos seus processos internos de modo a permitir um tratamento mais adequado das vítimas e sobreviventes de crimes internacionais, bem como assegurar que estes julgamentos servem, dentro das limitações do processo penal, como meio para entender as causas sistémicas e as consequências duradouras dos crimes que estão a ser julgados, uma vez que, de facto, são estes elementos contextuais e estruturais que elevam crimes ordinários a crimes internacionais. Devem, ainda, orientar as repercussões das decisões judiciais, que são por definição proferidas à distância, para as comunidades afetadas. Proporcionar a tradução e a gravação dos julgamentos, tal como garantir um programa mínimo de apoio a vítimas e sobreviventes seria já um bom ponto de partida.

No fim de contas, estes foram, sem dúvida, julgamentos importantes para a justiça penal internacional, é, contudo, fundamental não deixar escapar esta oportunidade para conhecer as fragilidades deste modelo de justiça penal internacional, pois, aos julgamentos de Anwar R. e de Taha Al J. somar-se-ão outros, aqueles que já correm nos tribunais alemães e aqueles cujas investigações virão.

Doutoranda em Direito Penal Internacional na Universidade de Göttingen, Alemanha

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