De como Rabo de Peixe começou na RTP

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Sem nenhuma ambiguidade sobre o sentido deste texto: mérito total para Augusto Fraga, que escreveu e realizou Rabo de Peixe (com a Patrícia Sequeira em alguns episódios), para a Ukbar Filmes que produziu, para os atores (que enorme José Condessa), para os criativos e técnicos -- fotografia, música e som, caracterização, guarda-roupa, coloring, etc., tanta gente que coloca Portugal na primeira liga do mundo da ficção Netflix. E agora vem aí uma justíssima segunda temporada. Excelente.

Posto isto, uma pequena história: esta indústria não nasceu do acaso. O audiovisual português foi durante muitos anos pouco mais que cinema de autor e telenovelas. Para mudar este ciclo foi decisivo o papel da RTP, primeiro na criação de públicos para a nova ficção europeia (RTP2, todas as noites), depois a aposta em séries portuguesas. Porque o dinheiro das grelhas de programas da RTP1 só pode ir para a ficção se acontecerem duas coisas: administrações que arriscam com os diretores de programas e aguentam flutuações nas audiências e um poder político que não interfere nessas opções do canal público nem se deixa acirrar pelo bullying sistemático de alguns media sobre os resultados diários dos diversos canais da RTP.

Em 2015, a nova administração da RTP (Gonçalo Reis, Nuno Artur Silva, Cristina Tomé) decidiu mudar o perfil da ficção na RTP e contratou um consultor com larga experiência na área -- Virgílio Castelo. Durante três anos, Virgílio fez um trabalho exaustivo de leitura e seleção de novas propostas. Daí nasceram quase 20 séries pensadas para o horário nobre. Três Mulheres, produzida Fernando Vendrell, Madre Paula, por Filipa Reis, e Teorias da Conspiração, por Leonel Vieira -- todas disponíveis no RTP Play --, são exemplos desse novo fôlego, que, depois, as novas administrações e o diretor da RTP1, José Fragoso, decidiram incentivar. Pôr do Sol, no formato de humor, é, nos tempos mais recentes, o melhor exemplo de boas audiências.

Glória, da SP Filmes, estreado em 2021, foi o primeiro (bom) resultado de um caminho criado entre a RTP e o Netflix. Mas o trilho estava já a ser alargado, porque já em 2019 Nuno Artur Silva, como secretário de Estado do Audiovisual e Media, convenceu a Netflix a criar um concurso de ideias para argumentos, documentários e animação portugueses. Houve 1184 propostas -- sinal do deserto de oportunidades existente para se produzir alguma coisa. Na ficção, o argumento de Augusto Fraga para Rabo de Peixe foi o escolhido para produção. Chegou ao ecrã agora. E surpreendeu internacionalmente.

Esta é a moral da história: não existe memória nem indústria audiovisual independente (sector onde trabalho diariamente) sem a RTP e o Instituto do Cinema e Audiovisual. São o principal motor da criação de memória da nossa contemporaneidade, uma espécie de Torre do Tombo digital. Alguém imagina o que seria não termos tido bibliotecas ao longo dos séculos (porque eram caras ou inúteis) e hoje fôssemos uma nação sem história ou heróis? Infelizmente, nem sequer compreendemos ainda o baixíssimo nível de apoio que concedemos a esta criação artística mais contemporânea e de como ela oferece um potencial de criação de riqueza, emprego e razão de ser português.

Rabo de Peixe foi ótimo. Mas quer o Estado quer as plataformas e canais cabo estrangeiros deveriam ser realmente obrigados a investir de forma mais relevante na produção portuguesa -- ficção, documentário, animação. A identidade portuguesa das novas gerações vai depender disso. E a sobrevivência das novas indústrias criativas também.

Jornalista

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