De Bragança a Lisboa não são nove horas de distância
A maquette interessou de imediato o arquiteto. Está lá tudo, em pormenores meticulosamente pensados. É a ideia para um centro de atividades da Ascudt, em Bragança: uma cobertura em vidro transparente amovível, para proteger ou deixar entrar o sol na piscina da fisioterapia, um elevador panorâmico para facilitar o acesso, no andar térreo as salas para as múltiplas funções. Eu traduzo: a Ascudt é a Associação Sócio-Cultural dos Deficientes de Trás-os-Montes. O arquiteto é Eduardo Souto de Moura, homenageado no fim de semana passado em Bragança. Ficou ali a observar atentamente e a fazer perguntas às técnicas da associação, rodeados pelas pessoas que tinham colaborado na idealização do edifício colorido.
Sexta-feira, 21, foi dia intenso para o arquiteto que, em Bragança, é autor do Centro de Arte Contemporânea Graça Morais: a fachada para a "rua dos museus" recupera o rosto do solar que abrigou o Banco de Portugal, mas para a rua de trás o edifício ergue-se num cubo agora cheio de esquissos e fotografias da obra de Souto de Moura. Bela exposição esta, feita por Joaquim Portela e António Queirós, cúmplices do arquiteto. No meio, um jardim com um belo bar que parece ter sido inventado para Lili, a jovem que toma conta do espaço e o enche de bolos, folares, bolas e económicos.
Mas recuemos nas horas desse dia que deixou Souto de Moura "varado" - a palavra que usou para significar a emoção que lhe deu asas para aguentar a longa caminhada no centro da cidade. Crianças e adultos das escolas e instituições da Misericórdia fizeram uma "maquette humana" do estádio da pedreira, a obra emblemática do arquiteto em Braga. A única discussão é: diz-se "estádio de Braga", como alguns defendem, ou "estádio do Braga"? As opiniões dividem-se e quem não é "do" Sporting de Braga não quer deixar de "ter" aquele estádio. Adiante.
A maquette humana, na Praça Camões, teve hino nacional, um golo de vitória da seleção marcado por um cristiano ronaldo pequenino que, acompanhado por outros jogadores equipados, deu voltas ao relvado e levantou a taça. Uma coisa séria e com muitos aplausos. Dali seguiu-se para a Praça da Sé, para dar de caras com uma fotografia gigante do arquiteto e uma série de obras de arte pública por ali abaixo. Por exemplo, o vale povoado de edifícios de Souto de Moura, feito pelos alunos do Instituto de Formação Profissional, uma maquette enorme onde é possível identificar exemplos do trabalho espalhado pelo país. E ele parado a olhar para aquilo, a brincar - "estão bem integrados na paisagem, talvez melhor do que os meus". E ao lado um conjunto de marcas - as chaminés da Casa das Histórias Paula Rego, os volumes da Casa do Cinema Manoel de Oliveira - das obras dele, mais uma vez espantado por terem "apanhado" os traços essenciais. And so on and so on, como diria Laurodérmio. Porque isto foi só o arranque da jornada.
Como se faz uma homenagem a um arquiteto, envolvendo os alunos de todos os níveis de ensino e de diferentes áreas? Com muito trabalho, muitos meses de preparação, a dedicação dos professores e o apoio da autarquia. Tudo isto coordenado pelo Plast &Cine, o festival que começou em Lamego e agora se fixou em Bragança. Em 2015, homenageou a pintora Graça Morais, ainda hoje emocionada quando fala disso. Dizia Souto de Moura: "Uma coisa destas só é possível numa cidade com esta dimensão." Trinta e cinco mil habitantes, um clima de "nove meses de inverno e três meses de inferno", uma cidade onde todos se conhecem. Onde não é possível estar mais de três horas sem comer e muito bem. Onde há uma rua com vários museus e centros culturais com nomes como Paulo Quintela, Adriano Moreira, Georges Dussaud (e um Centro de Interpretação da Cultura Sefardita. Onde se pode fumar nos cafés abertos noite dentro. Onde a única galeria de arte, de Emília Nogueira, festeja dez anos de existência teimosa. Onde as castanhas são mais doces e a carne se desfaz na boca.
Convidaram-me para ir lá conversar com o arquiteto e pensei logo: tão longe. "De Bragança a Lisboa são nove horas de distância", cantam os Xutos e fica no ouvido. Mas fui de avião e demorei uma hora e meia, com paragem em Viseu e Vila Real, a reconhecer lá do alto as paisagens. No regresso a Lisboa vim pelo Porto (duas horas de distância) e passei o túnel do Marão, uma daquelas obras de que ouvimos falar tanto tempo que até estranhamos: ainda não passou um ano sobre a inauguração. Entre ida e volta, dois dias de permanente atenção, a culminar num almoço comunitário em Sacoias, freguesia de Baçal, que festejava a renovada estrada para a capela.
De todos os momentos, talvez nenhum possa ser tão cheio de significado como o encontro do arquiteto Joaquim Moreno com Miguel, o Michel deficiente da sua infância na aldeia. "Fiquei tão contente por ver que ele está bem, tão bem tratado", disse, depois de ter ido cumprimentá-lo. "Lembras-te de mim?"