David
Recordado agora, David Machado de Sousa parece um homem de outro tempo. Da primeira vez que olhou para o nosso televisor a cores, torceu o nariz: "Isso é tudo fantasia!" E, no entanto, viveu até este século, o que, se não mostra como somos antigos, demonstra o quanto mudámos.
Foi o homem mais pobre que conheci. Comia pão e bebia leite, e os cigarros que enrolava, doseando o tabaco para chegar ao fim do dia, quase lhe desapareciam nas mãos, de tão transparentes.
Era analfabeto. Mas havia algo que pulsava quando se entrava na casa dele, ali em baixo no bairro social. Estava nos brinquedinhos de plástico que usava para enfeitar. Estava no ar circunspecto da Tia Alvinda, olhando em volta. Estava na higiene.
Nunca encontrei uma casa mais limpa do que a do homem mais pobre que conheci. David Machado de Sousa era meu tio--avô. Passou fome, que eu sei: havia dias em que saía de casa de manhã e voltava a casa à noite com a sua caixinha de engraxador intocada, sem ter engraxado um par de sapatos que fosse. Nem nesses dias tirava os óculos escuros, que até ao fim considerou o penhor último da sua dignidade. Uma manhã, era eu criança, levou-me a passear, bebeu de mais e caiu. O meu pai, chegado de mota à nossa procura, parecia o cavaleiro do asfalto, poderoso e redentor. O Tio David baixou os olhos e nunca mais pecou. O meu pai, que aliás não lhe era nada, foi o seu último amigo, sentando-se à sua frente aos domingos, no lar em que veio a morrer.
Mesmo nessa tarde, David conservou os óculos. "Isso aqui também é meu!", gritava, em delírio já. "Isso aqui também é meu!" Não era. Nada alguma vez o fora. David Machado de Sousa nunca possuiu o que quer que fosse de seu, a não ser aquele par de óculos escuros.
Ainda os tenho aí, algures. Um dia podem ser precisos.