Das palavras de Presidentes e ex-Presidentes

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"Naturalmente, demita-se", sugeria Mário Soares a Cavaco Silva. Estávamos no final de 2013, o governo de Passos Coelho ia a meio e o antigo Presidente da República, agastado com os efeitos da austeridade no país, afirmava sem margem para dúvidas: "Demita-se enquanto é tempo."

As críticas do histórico socialista eram então distribuídas sem cerimónias por chefe do governo e chefe do Estado. Argumentava o antigo governante -- que durante 14 anos ocupou os mais altos cargos na liderança do país -- com a forma como o governo PSD/CDS estava a "destruir o país", "conduzindo-o a uma espécie de nova ditadura", um regime que só resistia graças "à proteção anticonstitucional do Presidente Cavaco Silva".

As palavras foram ditas em entrevista televisiva e a mensagem repetida em artigos de opinião, escritos regularmente durante o governo de Passos Coelho (legitimamente eleito e com mais de 50% dos votos e dos deputados na Assembleia), ora embatendo contra o líder do governo ora chocando com o Presidente da República em funções que dizia dar ilegítima proteção ao governo, potenciar um regime ditatorial e não respeitar a Constituição.

Por duas vezes, Mário Soares foi primeiro-ministro de Portugal e cumpriu depois dez anos como Presidente, conseguindo mais de dois terços dos votos dos portugueses no segundo mandato. Cavaco Silva venceu duas presidenciais, depois de ter passado dez anos como primeiro-ministro, tendo liderado duas maiorias absolutas -- ainda que hoje isso quase pareça impossível, dada a reduzidíssima fatia de portugueses que reconhece ter votado nele. Tendo convivido com Soares enquanto chefes de governo e do Estado, como líderes de partidos de diferente ideologia e em lados distintos de campanhas eleitorais, estava naturalmente habituado a ouvir palavras duras, críticas, ataques e insinuações.

Desde que deixou a política ativa, quase não ouvimos falar de Cavaco Silva. Fez-se eco de palavras suas quando afirmou que "Portugal não precisa de mais autoestradas, precisa de mais crianças", quando assumiu ser contra a eutanásia, quando disse que não votou nas autárquicas (momento bastante infeliz), quando deu uma aula na Universidade de Verão do PSD, quando falou sobre a economia do país numa entrevista ao Expresso e sobre o seu livro, Quintas-feiras e Outros Dias, à RTP. Uma dúzia de vezes, talvez, em quase três anos.

Talvez seja por pouco se ver e ouvir dele desde que deixou a Presidência que, cada vez que Cavaco Silva fala, lhe cai o país em cima. A todos os ex-Presidentes se valoriza a opinião e a sua expressão pública -- exceto, surpresa, ao homem que por quatro vezes foi escolhido por mais de metade dos portugueses para tomar decisões e representar Portugal.

"Por uma questão de cortesia e de sentido de Estado, um Presidente não deve comentar nem ex-Presidentes, nem amanhã quando deixar de o ser, futuros Presidentes", disse ainda agora o ex-comentador e atual Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, comentando a afirmação de Cavaco Silva sobre a substituição da PGR, que sentiu como uma farpa atirada à sua figura e não ao governo, visado na frase de Cavaco.

A substituição de Joana Marques Vidal foi "a decisão mais estranha da geringonça", dissera o ex-Presidente. Palavras quase coladas às que deixara na entrevista ao Expresso, em fevereiro: "É mesmo estranhíssimo falar-se da substituição da PGR com dez meses de antecedência", disse então, escusando-se a ir mais além no comentário à "iniciativa do governo" e sem provocar reação presidencial. A questão fora levantada logo no início de janeiro, quando a ministra da Justiça, numa entrevista à TSF, afirmara que a recondução de Joana Marques Vidal não era uma hipótese já que "a Constituição prevê um mandato longo e um mandato único". Durante semanas, o assunto ferveu, entre opiniões políticas, técnicas e jurídicas, o tema foi politizado até ao nível parlamentar. A Marcelo, não se ouviu senão que só falaria no final do mandato da PGR; a Costa, que "é ao Presidente que compete nomear e exonerar o PGR, sob proposta do governo" e que essa decisão seria tomada no calendário previsto, decorrendo "como é próprio da Constituição, de um diálogo entre governo e PR".

"Um Presidente não deve comentar ex-Presidentes", diz Marcelo. Por feitio ou aprendizagem, Cavaco deixa-se estar. O ex-Presidente, já devíamos saber, só fala quando acredita ser importante dizer alguma coisa.

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