Das "contas certas" à "justiça para todos"
Depois das "contas certas", com o primeiro excedente orçamental da nossa democracia, e da "agenda do trabalho digno", com aumento inédito do salário mínimo, é chegada a hora da "justiça para todos", democratizando o acesso à boa justiça. Para isso, exige-se maior virtualização processual e a incubação de uma indústria de tecnologias do direito (legaltech) em língua portuguesa. É um bom exemplo das reformas que podem ajudar Portugal a sair da chamada armadilha do rendimento médio.
Mais do que mera digitalização de processos ou audiências por videoconferência, proliferam pelo mundo várias plataformas que integram o processo judicial, tornando-o acessível a todos os seus intervenientes, desde o momento em que os cidadãos decidem recorrer à justiça até à execução da sentença. E a pandemia acelerou essa virtualização judicial. Nalguns casos, criaram-se tribunais inteligentes, em áreas específicas, com processos totalmente remotos (os smart industrial courts nas Bahamas). Noutros, virtualizou-se por completo a primeira instância (no Vietname). E há quem tenha introduzido mobilidade na condução do contencioso (o China Movable Micro Court, onde tudo é possível a partir do telemóvel).
A acessibilidade à justiça é, naturalmente, mais do que a mera virtualização tecnológica de processos. Um bom exemplo disso são as nove comarcas chinesas (incluindo Pequim, Xangai e Cantão) onde se usa inteligência artificial (IA) para aumentar a literacia legal dos cidadãos e das empresas, e para otimizar o tempo e as funções dos funcionários judiciais - libertando, assim, recursos para a assessoria técnica dos juízes. Fazem-no através de terminais onde se acede à informação dos processos, se criam documentos judiciais digitais na hora ou se analisa as probabilidades do sentido da decisão final - o que incentiva o recurso à arbitragem ou mediação.
Apesar destes sinais, sabemos que o mundo do direito é a última fronteira da disrupção tecnológica. Uma fronteira prestes a cair quando se perceber que estes caminhos de virtualização da justiça, desde que respeitem os direitos fundamentais, oferecem também uma gigantesca oportunidade económica. Prova disso é o mercado global de legaltech valer já cerca de 20 mil milhões de euros, indo a fatia de leão para as jurisdições de língua inglesa e de common law.
Os exemplos sucedem-se. Com a crowdjustice, financiam-se casos que apenas tenham valor social, ou de cidadãos económica e socialmente mais frágeis. Foi assim que três deputados britânicos e uma ONG angariaram 200 mil libras provenientes de 8 mil pessoas - ganhando o caso contra o governo britânico por não ter divulgado os contratos públicos celebrados no combate à pandemia. Do outro lado do Atlântico, a Universidade do Michigan e o South Texas College of Law criaram um algoritmo que antecipou corretamente 69% das decisões do Supremo Tribunal americano. E o famoso bot DoNotPay anulou, num só ano, 160 mil multas de estacionamento.
As oportunidades são óbvias, sobretudo para um país como Portugal, com elevado número de advogados per capita, e com uma língua transnacional.
É neste contexto que o novo governo deve pugnar por uma nova e moderna "justiça para todos". Mas, para isso, terá de suprir carências que diminuem a nossa competitividade neste setor: escala insuficiente e pouca disponibilidade de conteúdos judiciais bem estruturados e compatíveis com IA; falta de bases de dados lusófonas comuns e integradas; deficiente harmonização processual no espaço lusófono; instabilidade legislativa e legística imperfeita; e inconsistências na linguagem e na formatação de peças processuais e sentenças.
É um caminho longo mas pragmático que alia a democratização da justiça ao desenvolvimento económico, incentivando novas tecnologias do direito em língua portuguesa, e assim contribuindo para que Portugal se torne uma economia de rendimento alto.
Colunista