Das bolas às balas

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Na reta final da campanha da segunda volta das eleições presidenciais de 2010, disputada pela quinta vez seguida entre um candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), no caso Dilma Rousseff, e do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), no caso José Serra, as televisões interromperam as emissões para anunciar que o segundo havia sido agredido por apoiantes da primeira.

Serra fazia ação de campanha no Rio de Janeiro quando a comitiva dos tucanos (como são conhecidos os simpatizantes do PSDB, de centro-direita) foi surpreendida com a presença de um grupo de petistas (os adeptos do PT, de centro-esquerda). Insulto daqui, empurrão de lá, objeto a voar pelo meio, e Serra acabou atingido.

Mas, afinal, o que caiu na calva do candidato tucano, perguntaram-se os eleitores. Até hoje correm duas versões: Serra foi atingido por uma bola de papel; e Serra foi atingido por um rolo de fita adesiva. Aliás, três versões: Serra foi atingido pelos dois objetos em momentos diferentes.

Seguiram-se as "guerras de narrativas online", um fenómeno, naqueles tempos, ainda em embrião: Serra, esperto, fez-se fotografar "ferido", com gelo na cabeça; mais esperto ainda, Lula da Silva, o padrinho político de Dilma, comparou o rival a Rojas, um guarda-redes que anos antes simulara grosseiramente ter sido alvejado no Maracanã.

Dias depois, mais drama. Em ação de campanha no sul do Brasil, Dilma foi alvo de retaliação de eleitores de Serra: um balão de água estourou quase em cima dela.

Colunistas na época falaram em "escalada de violência", em "sinais de intolerância", em "democracia em risco", nos "malefícios da polarização".

Bons tempos, esses, em que nenhum dos dois polos da polarização era composto por potenciais psicopatas. E benditos balões de água, fitas adesivas e bolas de papel.

No último dia 9, nem a campanha para as eleições deste ano começou, foi morto o guarda municipal Marcelo Arruda, militante do PT, por comemorar o 50.º aniversário numa festa, em Foz do Iguaçu, alusiva ao partido. Jorge Guaranho, um guarda penitenciário bolsonarista que andava nas redondezas, não gostou e invadiu a celebração com insultos e ameaças. Expulso, voltou minutos depois com uma arma. Matou Arruda e acabou gravemente ferido pelos tiros disparados em legítima defesa pela vítima antes de sucumbir.

O que aconteceu com o Brasil entre a fita adesiva de Serra de há 12 anos e os tiros mortais de Guaranho desta semana tem um apelido, Bolsonaro, e uns quantos nomes próprios, como Jair ou Eduardo.

Horas antes do crime, o deputado Eduardo Bolsonaro, que tem foto abraçado ao assassino nas redes sociais, discursou em evento pró-armas: "A esquerdalha nunca imaginou que tantas pessoas pudessem vir às ruas para falar que, sim, quero estar armado... Não tem que respeitar a esquerda, não". E horas depois do crime, festejou o seu próprio aniversário, soprando as velas, com a filha ao colo, de um bolo em forma de revólver.

O pai, cujas frases incendiárias ao longo de 30 anos de carreira política não cabem num artigo de jornal, disse em 2018, o mesmo ano em que foi esfaqueado, que se fosse eleito iria "fuzilar a petralhada [simpatizantes do PT]". Confrontado por uma jornalista com essa afirmação após a morte de Marcelo Arruda, o presidente do Brasil defendeu-se. "Sentido figurado, você não sabe o que é sentido figurado?".

A jornalista sabia. Jorge Guaranho e muitos outros bolsonaristas à solta por aí não fazem ideia.

Jornalista, correspondente em São Paulo

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