Já ouvi pessoas dizer que não vão dar filhos. O tudo ou nada é muito triste. Os casais não querem ou não precisam de mais filhos, mas há a ideia de que "se não os quero ter, também ninguém os vai ter". "Acham que são filhos, mas permitem que sejam destruídos. Dito assim parece muito duro. E é. É uma realidade dura. E séria. E grave." Carla (nome fictício), de 38 anos, entristece-se quando pensa no baixo número de doação de embriões que existe em Portugal, pois foi esta técnica de procriação medicamente assistida (PMA) que lhe permitiu concretizar o sonho da maternidade depois de vários anos de frustração e angústia. Mas, como dizia o médico que a acompanhou, "não há fome que não dê em fartura": "Estamos em 2019 e os nossos filhos gémeos têm 4 anos.".Após largos meses a tentar engravidar, Carla procurou ajuda médica no início de 2009. Primeiro, descobriu que os filhos nunca teriam os genes do pai. Uma notícia que veio acompanhada de dor e indecisão. Era preciso decidir "limpar ou guardar as armas". Houve mais tentativas, mas descobriram que os ovócitos de Carla "também não eram capazes". Em 2013, quando já não era possível seguir os tratamentos nos hospitais públicos, Carla e o marido resolveram ir ao privado. Foi aí que lhes falaram da hipótese de recorrer à doação de embriões. Não fez muitas perguntas. Queria apenas saber o indispensável. Em conjunto com o marido, chegou à conclusão de que seria "a solução mais justa". "Tivemos sorte, porque, apesar de haver pouquíssimos casais a doar embriões, o processo foi extremamente rápido." No primeiro tratamento engravidou - "a primeira vitória" -, mas sofreu um aborto espontâneo ao fim de poucas semanas. Não desistiu. Houve uma nova transferência de embriões criopreservados e ficou grávida de gémeos..As duas crianças estão entre as 28 que nasceram em Portugal entre 2013 e 2017 (últimos dados disponíveis) em resultado de ciclos de transferências de embriões doados, fruto de tratamentos anteriores de reprodução assistida - uma possibilidade prevista na lei desde 2006. De acordo com os dados do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), no mesmo período foram doados 223 embriões criopreservados a outros casais, que resultaram em 116 transferências de embriões para mulheres recetoras..Em 2017, o último ano com dados recolhidos, foram implantados 33 embriões, menos seis do que no ano anterior. Como a transferência dos embriões nem sempre ocorre com êxito, as doações só permitiram o nascimento de 28 crianças. Nesses cinco anos, foram doados 127 embriões para fins de investigação e eliminados 1132..No período entre 2009 e 2017, foram criopreservados em Portugal 28 322 embriões. De acordo com a legislação em vigor, os que não forem transferidos no âmbito dos tratamentos de PMA - os excedentários - podem ser congelados por um período de três anos, que pode ser estendido por mais três. No final dos primeiros três anos, "podem os embriões ser doados a outras pessoas beneficiárias cuja indicação médica de infertilidade o aconselhe" ou "doados para investigação científica". Se não forem encaminhados para nenhum desses fins, são destruídos ao final de seis anos..Pedro Xavier, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução (SPMR), diz que "as clínicas portuguesas não têm uma prática sistemática de destruição dos embriões". Em Portugal, "o número de casais que autorizam a doação dos seus embriões excedentários é uma pequena minoria", e "como a destruição de embriões é um tema sensível, muitas clínicas optam por ir adiando esse procedimento". No entanto, se o casal não permitir doar esses embriões, "o seu destino acabará mesmo por ser o da descongelação e eliminação". Para o ginecologista, o número de crianças que nascem fruto da doação de embriões é "muito reduzido". "É óbvio que seria desejável que fosse muito superior, mas tal só será possível no futuro se houver um aumento do número de doações de embriões", refere. No entanto, reconhece, "é compreensível que a decisão de doar embriões seja mais sensível e complexa do que a doação de gâmetas [óvulos ou espermatozoides]"..Anonimato transitório aprovado.Se a doação de embriões já não era um tema fácil para as famílias quando existia a garantia do anonimato dos dadores, o assunto tornou-se ainda mais delicado com o acórdão do Tribunal Constitucional que acabou com o anonimato, a 24 de abril do ano passado..Essa decisão deixou em suspenso tratamentos e famílias. Entretanto, foi criado um grupo de trabalho para discutir cinco projetos de lei - de BE, PSD, PCP, PS e PAN - aprovados a 6 dezembro, que visava salvaguardar o anonimato de quem fez doações para PMA antes de o Tribunal Constitucional acabar com a confidencialidade da sua identidade. Nesta quarta-feira, exatamente um ano depois, foi conhecida a decisão..O grupo de trabalho para a procriação medicamente assistida aprovou um regime transitório para garantir o anonimato a quem tenha doado gâmetas (óvulos e espermatozoides) e embriões. As doações anteriores a 7 de maio de 2018 mantêm-se protegidas pelo anonimato, após a entrada em vigor da lei, durante cinco anos no caso dos embriões, por três no caso de óvulos e espermatozoides. Falta a aprovação em plenário e publicação no Diário da República..Pedro Xavier considera que a aprovação deste regime transitório "era essencial" para resolver uma questão que era "uma crueldade", "irónica" até. "A preocupação com a identidade do dador da criança nascida ia gerar uma destruição maciça de embriões.".Doações de embriões são raras."O regime transitório aprovado nesta quarta-feira foi sem dúvida um passo importante e que vai favorecer os casais que se encontravam à espera desta decisão, visto terem ficado com o projeto reprodutivo suspenso dado terem embriões criopreservados que foram gerados com recurso a doações, e estes dadores ao serem consultados sobre as alterações relativas ao anonimato não aceitaram essas modificações", diz a clínica IVI ao DN..Sofia Nunes, diretora do laboratório de fertilização in vitro desta clínica, em Lisboa, revela que, no que diz respeito à doação de embriões, "se a percentagem dos que aceitavam doar já era baixa, ficou ainda mais baixa, porque o fim do anonimato foi mais um entrave". Na clínica - onde foram realizadas mais de dez transferências de embriões doados e que resultaram em mais de cinco recém-nascidos vivos - cerca de 35% dos casais aceitam doar os embriões excedentários numa primeira fase, mas, ao fim de três anos, só 10% aceitam manter a doação. Desde maio de 2018 até aos dias de hoje, notámos que o fim do anonimato fez que essa percentagem baixasse, e apenas cerca de 2% mantiveram a intenção de doar. Agora, e porque haverá famílias abrangidas por esta norma transitória, é natural que exista um discreto aumento na intenção de doar, mas no futuro possivelmente a tendência será que volte descer e a situar-se na ordem dos 2% a 5%, segundo a IVI. "As pessoas questionam se mais tarde serão confrontadas com alguém a dizer que é seu filho e que as quer conhecer. São questões muito sensíveis", refere Sofia Nunes. Mesmo quando o anonimato era assegurado, a maior parte dos casais não aceitava doar, porque, já tendo filhos, tinham dificuldade em aceitar a ideia de que estes iam "ter irmãos por aí a circular. Têm medo de que se encontrem"..Dezenas de embriões bloqueados.Com o acórdão do TC, os centros de fertilidade foram obrigados a contactar os casais para perceber se mantinham a doação sem a garantia de anonimato. Houve casos em que não conseguiram falar com as famílias e muitas que voltaram atrás na sua decisão..Vladimiro Silva, administrador da Ferticentro, conta que a clínica de Coimbra tinha "27 casais interessados em doar embriões, mas, com o acórdão, só três mantiveram a doação de forma não anónima". Neste momento, há 55 embriões bloqueados..O regime transitório protegerá estes embriões. Só na Ferticentro há 13 casais em lista de espera para fazer tratamentos com embriões doados. Segundo Vladimiro Silva, há várias razões pelas quais recorrem a esta técnica. Fazem-no, por exemplo, nos casos de infertilidade, em que a mulher tem idade mais avançada e não é capaz de produzir óvulos de boa qualidade, ou porque existem poucos recursos económicos - com doação de óvulos o processo custa perto de seis mil euros, enquanto com doação de embriões ronda os 1500 euros..A aprovação deste regime transitório vai permitir voltar a trabalhar estes embriões, mas não resolve a questão de fundo: que existam tão poucos. "Não me preocupo com aqueles que têm cinco anos pela frente, preocupo-me com o sexto ano", diz Vladimiro Silva. "Era mais fácil quando era anónimo, é um aspeto mais sensível e valia a pena pensar no anonimato", diz o médico..Teresa Almeida Santos, diretora do Serviço de Reprodução Humana do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, acredita que a tendência é para as doações diminuírem e, consequentemente, nascerem menos bebés em resultado desta técnica em Portugal. "Esta prática vai certamente diminuir no futuro. Era uma boa alternativa, porque em vez de ficarem congelados ou de serem destruídos, estes embriões permitiam concretizar o projeto parental a casais que não têm outra possibilidade. Contudo, não vejo um futuro risonho para esta prática em Portugal", refere..No serviço que dirige, em Coimbra, Teresa Almeida Santos diz que só foi possível fazer uma doação desde 2006. Para aumentar o número de doações, é necessário haver uma maior sensibilização sobre o tema. "Enquanto o assunto não for mais falado, mais banalizado e não se apelar ao altruísmo, ninguém se quer sujeitar. As pessoas têm receio, sobretudo no impasse legislativo em que vivemos", afirma a também professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.."Considero-os filhos", diz uma dadora.Ana (nome fictício), de 45 anos, não tem receio de que daqui a alguns anos alguém lhe bata à porta a dizer que é seu filho. Doou quatro embriões com a garantia de anonimato, mas não vê qualquer problema na sua quebra. É uma exceção. "Se houvesse essa necessidade ou se a criança/adulto quiser saber, nós damos autorização. Fizemos tudo com o coração. Não queríamos ter mais filhos, mas não queríamos que eles não nascessem. Considero-os filhos, ainda que não os vá criar", diz ao DN..Quando lhe puseram a hipótese de doar os embriões que sobraram do seu processo de PMA, Ana não aceitou de imediato. "Depois de os gémeos nascerem, chegou uma carta a perguntar se queríamos manter, doar ou destruir os embriões. Eu já tinha 42 anos e não íamos ter mais filhos. E os miúdos eram tão giros. Não podíamos deixar que os irmãos não nascessem", recorda. Não foi por convicções religiosas, ressalva, mas considera que são seres humanos. "Depois de ver os meus filhos a sorrir, a correr, pensei: por que não dar a oportunidade aos outros? Também vivi na pele o querer ser mãe e não conseguir.".Quem recorre a este procedimento geralmente já passou por um longo período a tentar engravidar. "Sabíamos que iam estar em boas mãos", diz Ana, destacando que fez o que a sua consciência lhe mandou. "É uma questão pessoal. Ficaria pior se desse os embriões para a ciência ou se autorizasse a sua destruição.".Ana é uma exceção também pela forma como o processo decorreu. Primeiro, disse que não, mas depois decidiu doar. O mais comum é acontecer o contrário: os casais aceitam doar, mas depois desistem..José Cunha, diretor da AVA Clinic, revela que 20% dos casais manifestam essa intenção inicialmente, "mas, efetivamente, nos últimos dez anos só se concretizaram 14 tratamentos com transferência de embriões" na clínica que dirige. Destes, resultaram três casos de gravidez, com o nascimento de uma criança..Quando um embrião é descongelado, pode não sobreviver. "A taxa de sobrevivência não é de 100%, ronda os 80% a 85%." Além disso, prossegue, o baixo número de transferências prende-se também com o facto de a clínica ter critérios apertados para avançar com o processo. Usam, por exemplo, critérios clínicos e familiares (como a história de doenças na família) semelhantes aos que são usados quando há doação de ovócitos. Se o número já era reduzido, poderá passar a ser ainda mais baixo. "É natural que o fim do anonimato tenha impacto", admite o especialista em medicina de reprodução.