Daniel

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O primeiro livro que li chamava-se Um Deus à Beira da Loucura. Não o primeiro que li: o primeiro que comprei. Vi-o à venda no quiosque da DRAC, tinha talvez uns 15 anos, e dei por mim acometido de um desejo. Namorei-o durante semanas e, quando me apanhei com dinheiro na algibeira, levei-o para casa. Creio que me seduziu a subversão do título. Mas, depois, era mais do que isso, ele. Era um livro sobre o Holocausto que, no entanto, parecia passar-se noutro lugar qualquer. E era um livro de um grau de humanidade que eu desconhecia. Andei com ele para todo o lado durante meses. Por causa dele, em parte, decidi tornar-me escritor.

Fui amigo do autor desse livro. Quinze anos depois, Daniel de Sá era um escritor com uma aura de obscuridade quase mística: conhecia-se a sua obra, mas o homem permanecia circunscrito na Maia, na costa norte de São Miguel. Nunca se deixava ver durante as minhas passagens por Ponta Delgada.

Atravessei a ilha, e o que encontrei foi o oposto do que esperava: uma casa de família, harmoniosa e íntima, que me fez desejá-la para mim próprio, um dia. Desde então, fomos amigos. Líamos e comentávamos o trabalho um do outro. Mandávamo-nos textos repentistas.

O Daniel fazia um poema a partir de qualquer coisa - até das derrotas do Sporting.

Ontem pediram-me um depoimento sobre ele, para um programa de rádio. Lembrei-me da última vez que nos encontrámos. Foi da Maia a Ponta Delgada, para assistir ao lançamento de um livro meu, e, no fim, deixou-me um exemplar de As Rosas de Granada, a série de poemas que acabara de escrever para a mulher, Alice.

Li-o e pensei: aqui está o legado perfeito de um escritor, o seu amor por uma mulher. Daniel morreu meses depois, ainda novo. Olhando para trás, não pode ter sido tão inesperado quanto isso.

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