Daniel Adrião. "O PS é um partido pouco democrata. Ouve cada vez menos as suas bases"
Pede mais democracia interna no partido. Quer explicar?
Quando proponho mais democracia interna no PS, significa que há um défice de democracia interna, intrapartidária, em geral no sistema político português, e muito em especial no PS. Há 40 anos que milito no partido e, ao longo deste tempo, tenho vindo a assistir a uma degradação da qualidade da democracia interna.
Há uma ditadura interna, é isso?
Não, há uma democracia com falhas, que é, aliás, como várias organizações internacionais classificam a democracia portuguesa. Portanto, não somos uma democracia plena, pela qual me bato, tanto ao nível do PS, a montante do sistema político, quanto a jusante, no sistema de representação. Quero um aprofundamento dos mecanismos de participação democrática dos cidadãos. Acho que o PS é um partido pouco democrata, isto é, tem perdido tração democrática, ouve cada vez menos as suas bases, está muito hierarquizado, demasiado elitizado. É um partido muito vertical na sua forma de funcionamento, com o poder todo concentrado no topo, nas elites dirigentes.
Isso deve-se diretamente ao exercício do poder governativo?
Sim, claro. Decorre do exercício continuado do poder. O PS, aquando da sua fundação, não era assim. Era um partido que ouvia muito os militantes e os envolvia nas decisões - por exemplo, dos deputados. Ainda me lembro de quando os deputados eram escolhidos em plenários de militantes.
Nesse sentido, também defende a renovação no processo de escolha de candidatos titulares a cargos políticos e que os militantes tenham uma palavra a dizer. Como é que isso se faz na prática?
Antigamente, era feito em plenários. Tenho essa memória viva, sou da concelhia de Alcobaça, militei muitos anos na concelhia de Alcobaça, agora já me transferi para Lisboa, mas durante muitos anos fui militante socialista em Alcobaça, aliás, fui presidente da concelhia, etc., e lembro-me de que o primeiro deputado que Alcobaça teve ao Parlamento era um operário vidreiro. E esse operário vidreiro da antiga fábrica Crisal de Alcobaça, chamado José Dionísio, tinha sido escolhido pelos militantes de base do partido, e não por Mário Soares, para ser deputado à Constituinte. Portanto, isto mostra que o PS era um partido onde o poder assentava na sua base social de apoio. Isso acabou.
E como é que seria um sistema atual: um sistema de eleições primárias, por exemplo?
Exatamente.
Ou seja, os militantes pronunciavam-se em eleição sobre as listas de candidatos a deputados. Esse sistema tem vindo a ser aplicado no Partido Livre. Que avaliação faz dessa experiência no Livre?
A experiência é positiva, apesar de existir sempre a possibilidade de erros de casting, digamos assim.
Houve uma situação muito complicada para o Livre, a rutura com Joacine Katar-Moreira...
Sim. Mas, por exemplo, Barack Obama nunca teria tido qualquer hipótese de sonhar vir a ser Presidente dos Estados Unidos, e sê-lo.
Quem diz Barack Obama, diz Donald Trump, certo?
Sim. Portanto, para o bem e para o mal, o processo de seleção e recrutamento, se for feito pelas bases, tem muito mais aderência com aquilo que é a realidade, e até com a realidade sociológica existente.
Essa perda de democraticidade interna não tem sido penalizada pelos eleitores. Ou seja, de facto, o PS ficou cada vez mais consolidado no poder, sem que essa suposta falta de democraticidade interna tenha levado os eleitores a penalizar o partido.
Mas esse poder tem cada vez menos legitimidade democrática porque tem cada vez menos participação popular. Essa é que é a questão. Há cada vez menos gente a votar. A abstenção atinge níveis recorde em Portugal. Portanto, sentimos que, de facto, há uma descrença cada vez maior da população, dos portugueses, em relação à classe política e aos políticos e, sobretudo, aos partidos moderados. Isso é que me assusta. Aliás, candidato-me à liderança do PS para travar a extrema-direita, porque sei que a minha candidatura propõe um modelo de governança partidário e também do sistema de representação que vai dar mais força e poder aos cidadãos. E, quanto mais poder colocarmos nas mãos dos cidadãos, mais confiança terão no nosso sistema político e, sobretudo, nos partidos moderados.
Considera que o primeiro-ministro e o secretário-geral não devem ser a mesma pessoa?
Sim, considero.
Isto não introduziria um problema de liderança bicéfala das maiorias governativas e um decorrente potencial de conflito?
Não defendo lideranças bicéfalas, defendo lideranças policéfalas. O poder tem de estar muito partilhado; quanto menos concentrado, melhor. Não acredito em líderes iluminados, mas, sim, em opiniões públicas esclarecidas e na inteligência coletiva. Muitas cabeças pensam melhor do que uma só. Portanto, quero o poder muito bem distribuído. Não quero ninguém que acumule o poder todo, porque isso leva a abusos de poder e a desmandos. É da natureza humana. As pessoas não podem ter muito poder porque tendem a abusar dele. Como alguém dizia: todo o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente. E, portanto, temos de distribuir muito bem o poder para que haja sistemas de controlo e de fiscalização permanentes.
Efetuados a partir do partido para o Governo?
Exatamente. Acho que o PS tem de ser a consciência crítica do Governo. Os militantes do PS têm de ser os provedores dos cidadãos junto do Governo.
Ou seja, o PS devia constituir um governo sombra em relação ao seu próprio governo?
Não, não acho que o PS tenha de constituir-se como uma alternativa ao próprio Governo do PS. Mas, o PS tem a obrigação e o dever de fiscalizar a ação governamental e também contribuir para as políticas públicas, dar os seus inputs sobre aquilo que devem ser as políticas públicas. Aliás, acho que o PS deve instituir uma espécie de estados gerais em permanência, deve estar permanentemente em reunião, debate e diálogo, precisamente para ouvir a sua base social de apoio e para que esta. e a massa crítica enorme que o PS felizmente tem, possam aportar valor às políticas públicas e ajudar, de facto, o Governo a seguir melhores políticas.
Este ciclo acabou mal. Temos a primeira maioria monopartidária que cai a meio. E temos o primeiro primeiro-ministro que se demite a braços com um problema de justiça. Isto de alguma forma decorre destes problemas de democraticidade dentro do PS?
Claro que sim. Há uma relação absolutamente óbvia e acho que toda a gente percebe isso.
Sendo que, nesta maioria, os problemas sempre foram criados por dentro, ou seja, a oposição não mexeu uma palha para este Governo cair.
É verdade. No fundo, o PS criou os seus próprios problemas, sobretudo agravados desde a maioria absoluta. E, portanto, um poder absoluto é realmente nocivo, pernicioso. Não podemos dar a ninguém um poder absoluto, isso é mau para a democracia porque mina a confiança dos cidadãos nas instituições, já que, de facto, a fiscalização praticamente deixa de existir.
Mas foram os portugueses que decidiram...
A decisão dos portugueses é sempre soberana, mas acho que os portugueses se arrependeram dessa decisão. E acho que tão cedo não irão dar nenhuma maioria absoluta a um partido.
Portanto, se for eleito líder do PS e candidato a primeiro-ministro, nunca pedirá uma maioria absoluta para si?
Não, nunca pediria. Aliás, não ouvi ninguém pedir maiorias absolutas, que é, aliás, uma coisa que cai mal, não é? Parece que a pessoa quer para si o poder absoluto. Portanto, ninguém pede maiorias absolutas. O poder tem de ser contratualizado. Defendo - sendo fiel àquilo que é a matriz fundacional do PS em termos até do próprio sistema político - que o PS é um partido de charneira do sistema político português e, portanto, que tanto deve dialogar com as forças à sua esquerda, como à sua direita. Sei que já aderiram a esta minha tese tanto Pedro Nuno Santos como José Luís Carneiro, mas fui eu o primeiro a dizê-lo. Aliás, também têm vindo a copiar-me em propostas, designadamente da reforma do sistema eleitoral.
Se for eleito e, depois, candidato a primeiro-ministro, poderíamos ter consigo uma geringonça de direita ou de esquerda, é isso?
Não. Podíamos era ter um governo que sabe dialogar com as forças políticas tanto à esquerda como à direita e que tem sempre a preocupação de construir pactos de regime para resolver os problemas de fundo dos portugueses. Porque temos de fazer reformas estruturais e estas não são necessariamente de direita. O PS foi sempre um partido reformista e temos de manter essa perspetiva reformista no nosso ADN; há reformas que são absolutamente fundamentais no país e temos de as fazer urgentemente.
Defende uma reforma da lei eleitoral para introduzir o voto nominal. Por que é que essa reforma nunca avançou até agora?
É um mistério. Acho que, aliás, que esse é o segredo mais bem guardado do regime.
Neste momento, ninguém a defende formalmente.
O PS defendeu-a durante 30 anos até que António Costa a mandou retirar do programa nas últimas eleições; ela esteve lá desde António Guterres.
O voto nominal é o voto em que os eleitores escolhem diretamente os seus deputados. Dentro de uma lista, decidem quem põem à frente e quem põem atrás.
Exatamente. Muitos portugueses não têm a noção de que a forma como votam é completamente diferente da forma como votam a generalidade dos cidadãos europeus. Em Portugal, temos um sistema eleitoral completamente invulgar, uma aberração porque é um sistema de listas fechadas e bloqueadas - portanto, está logo tudo dito, não é? É um sistema onde os cidadãos, no boletim de voto, apenas podem votar em nomes e símbolos de partidos. Os cidadãos estão condenados a passar um cheque em branco aos partidos. Ora, na generalidade dos países europeus, não se vota assim. Os cidadãos votam em partidos, mas votam depois em pessoas em concreto, porque as listas têm o nome dos candidatos (alguns, até com fotografias), as listas plurinominais, abertas, com voto preferencial e nominal, os cidadãos escolhem diretamente os seus deputados. Até há sistemas onde o voto é ordinal, isto é, onde os próprios cidadãos podem ordenar a lista de acordo com as suas preferências. O partido propõe uma determinada ordenação e os cidadãos mudam essa ordenação. Isso, sim, é uma verdadeira democracia plena, com plenos direitos eleitorais. Os portugueses não têm plenos direitos eleitorais.
Mas não teme uma hiper personalização da política? Ou seja, passa a haver duas campanhas: dos candidatos para obterem o voto dos eleitores e também dos candidatos para obterem o voto do seu próprio partido para serem candidatos a candidatos.
Acho que isso é ótimo, é um mecanismo de aprofundamento da democracia e de maior esclarecimento.
Já vimos, por exemplo, no poder local, processos de hiper personalização da política, com candidatos a ganhar as eleições e a prometerem eletrodomésticos. Isso é ótimo?
Também já vimos primeiros-ministros a prometerem eletrodomésticos e a darem em eletrodomésticos: lembremo-nos de Cavaco Silva. Acho que este modelo permite muito mais fiscalização, escrutínio e prestação de contas e um maior controlo democrático. Os eleitos passam a responder perante os eleitores e a cidadania; não só, como acontece hoje, perante o líder ou a cúpula partidária, de quem depende a sua continuidade.
Um dos seus objetivos é "elevar Portugal e devolver o PS aos seus militantes e à sua base social de apoio" e promover "uma agenda estratégica de médio e longo prazo que coloca Portugal no pelotão da frente da União Europeia no horizonte de uma geração" Como é que se propõe fazer isto?
Com uma ação e uma governação estratégicas. Aliás, Kennedy costumava dizer que há dois tipos de políticos: os que governam a pensar nas próximas eleições e os que governam a pensar nas próximas gerações. O que tem faltado a Portugal são políticos que governem a pensar nas próximas gerações. Isto é, políticos que façam políticas de médio e longo prazo com opções estratégicas. Proponho, por exemplo, um pacto de regime para resolver de vez o problema gravíssimo e emergencial da habitação em Portugal. Temos de encarar de frente este problema, que não se resolve com paliativos ou com assistencialismo, com subsídios às rendas ou apoios ao pagamento das prestações da casa - que aliás empurram para a frente a dívida e fazem com que os portugueses ainda tenham de acumular mais dívida para o futuro. Portanto, não é empurrando os problemas com a barriga que se os resolve.
Quer partilhar connosco três medidas para resolver os problemas da habitação?
É preciso, nos próximos 10 anos, resolvermos este problema, tal como a Suécia fez nos anos 60. A Suécia tivera um processo de re-industrialização muito acelerado no pós-guerra - construíram-se muitas fábricas junto aos grandes centros urbanos, houve um grande êxodo dos campos para as cidades e isso criou uma grande pressão em termos da habitação. Então, em 1962, o governo social-democrata sueco fez um pacto com todos os partidos e elegeu a habitação como uma grande prioridade estratégica do país. E, em dez anos, a Suécia, que tem cerca de 10 milhões de habitantes, como Portugal, construiu um milhão de casas e resolveu os problemas da habitação por gerações. É isso que proponho que se faça em Portugal.
Com construção do Estado?
Sim, em parceria com os privados e com o setor cooperativo. Foi criminoso termos acabado com o setor cooperativo em Portugal, que foi responsável pela construção de centenas de milhares de fogos ao longo de muitos anos - ainda antes do 25 de Abril e mesmo depois do 25 de Abril, durante muito tempo. Precisamos de recuperar o setor cooperativo na área da habitação e, também, de mobilizar os privados e de fazer um grande esforço de políticas públicas. Proponho que seja alocada a este projeto cinco por cento da receita do Orçamento do Estado (cerca de cinco mil milhões de euros) para construir meio milhão de casas. Construir, reconstruir ou reabilitar, mas disponibilizar um conjunto de meio milhão de casas, para que possamos resolver de vez o problema da habitação em Portugal. Como se sabe, é um primeiríssimo direito constitucional.
O outro drama dos portugueses tem sido o SNS. Se for eleito secretário-geral e depois chefe de governo, como é que pretende fazê-lo sair do caos presente e resolvê-lo?
É verdade. Tem havido graves problemas de gestão no SNS. É preciso encontrar melhores gestores para o SNS e para o sistema hospitalar. No fundo, é preciso dar mais e melhores garantias e condições de trabalho aos profissionais da área da saúde. É preciso pagar-lhes melhor. Temos de ser competitivos com o privado. Porque, por exemplo, não há falta de médicos em Portugal, senão no SNS. Porque o SNS não é atrativo para os médicos, que fogem todos para o privado. Portanto, temos de pagar bem aos médicos para que eles possam estar no SNS. Muita gente em Portugal, felizmente, pode e tem seguros de saúde e pode recorrer aos privados, mas quem não pode recorrer aos privados são mesmo os mais vulneráveis, que dependem exclusivamente do SNS é fundamental. É uma questão de vida ou de morte e, para esses, não podemos deixar de garantir cuidados de saúde de primeira qualidade. E, portanto, temos de ter um SNS a funcionar e a funcionar bem. Sem bons profissionais de saúde, o SNS acaba. E não podemos cometer a heresia de acabar com a principal marca dos socialistas em Portugal, que foi precisamente o projeto da criação do SNS.
Vamos voltar às questões internas no PS. Os estudos apontam que será uma espécie de terceira via entre Pedro Nuno Santos e José Luís Carneiro. Os órgãos do partido, a Comissão Política e a Comissão Nacional, até podem vir a ficar numa espécie de charneira entre duas maiorias, ou duas maiorias relativas. Tenderá a inclinar-se mais para que lado?
Para aquele que apresentar o projeto mais reformista para o país e para o partido.
Se não fosse candidato, votaria quem? Pedro Nuno Santos ou José Luís?
Em nenhum deles. Estive, aliás, muito hesitante em avançar com a minha candidatura e esperei que os outros candidatos se apresentassem para perceber se algum deles verdadeiramente representava algo de novo.
Pensou em algum nome que não avançou?
Não. O PS tem 80 mil militantes e, portanto, há muita gente que não estava ligada ao ciclo político que agora terminou e que teve um final, como disse e bem, não foi propriamente feliz.
Os seus dois adversários são mais do mesmo?
Tenho dito isso desde o primeiro minuto. São candidatos da continuidade, representam um ciclo político que agora terminou.
Uma má continuidade?
Uma continuidade com muitas falhas. Era importantíssimo que o PS tivesse deixado marcas reformistas na governação e, infelizmente, não deixou. Deixou contas certas, o que é preciso valorizar enquanto principal marca dos governos de António Costa ao longo destes anos. Mas havia a necessidade de uma ação mais reformista em muitas áreas que, infelizmente, não existiu. Designadamente, o país precisa de mudar o seu paradigma de desenvolvimento, não pode continuar a ter um paradigma económico assente na mão-de-obra intensiva e nos baixos salários. Precisamos de fazer a transição para um paradigma económico assente no conhecimento intensivo, nos recursos humanos altamente qualificados e numa economia de alto valor acrescentado, porque esse é o padrão europeu. Não estamos aí e por isso é que continuamos na cauda da Europa, a ser ultrapassados por países que aderiram à UE quase 20 anos depois de nós, que tinham economias completamente arrasadas e que receberam muito menos fundos estruturais do que nós. É preciso dizer isto. O país tem de acordar porque isto não pode continuar. E não pode continuar esta fuga, esta sangria dos jovens portugueses mais qualificados para fora. Quer dizer, isto não é uma estratégia de criação de valor, é uma política de destruição de valor. Então, o país investe milhares de milhões de euros na formação de ativos estratégicos ao longo de uma geração e, depois, deixa-os fugir a troco de nada? Temos de mudar a nossa estratégia.
Vamos falar de política de alianças do PS. Primeiro, dentro do quadro do seu raciocínio de valorização do partido, qualquer política de alianças do PS pós-eleitoral ou pré-eleitoral tem de passar por decisões internas dentro do PS. E, se passar, é por congresso, Comissão Nacional, Comissão Política ou referendo?
É por referendo interno. Comigo, não haverá alianças pré ou pós-eleitorais, qualquer entendimento permanente com qualquer partido, sem referendo. Aliás, em 1983, o PS decidiu fazer uma coligação de governo com o PSD, o célebre Bloco Central, após referendo interno. E a maioria dos militantes do PS apoiaram essa coligação.
E durou dois anos. Portanto, a sustentabilidade democrática não teve nenhuma implicação na duração.
Mas foram dois anos decisivos para o país. Foi um governo muito importante, porque respondeu a uma bancarrota. Valorizo-o muito porque, de facto, tinha gente muito competente, de altíssimo nível e que fez um excelente trabalho em prol do país.
Não é grande entusiasta de soluções de entendimento à esquerda ou está rigorosamente equidistante nessa matéria?
Não. Apoiei a geringonça, achei-a uma boa solução. Mas falhou sobretudo na falta de ambição. Esperava um projeto mais ambicioso, também igualmente reformista, porque há reformas sociais que têm de ser feitas à esquerda e que ficaram por fazer. A geringonça funcionou durante os primeiros dois anos de governo para restituir direitos, salários, etc., o que foi muito importante - aí a geringonça funcionou. Mas os acordos esgotaram-se nisso. Ao fim do segundo ano do governo, o PS estava atado de pés e mãos porque não podia fazer mais nada porque não estava previsto nos acordos e porque dependia do PCP e do Bloco de Esquerda para viabilizar os seus orçamentos. Portanto, ficou praticamente paralisado durante esse tempo.
PS, o PCP e o Bloco não serão tão diferentes entre si, nomeadamente na relação com o problema das contas certas e na obediência às imposições de Bruxelas. Então, como é possível haver uma agenda positiva, reformista, que os meta no mesmo saco?
Acho que há duas áreas onde isso é possível. Na saúde, as posições do PS estão muito próximas das posições do Bloco e do PCP, o que permite que haja um entendimento. E, por exemplo, na educação. Se estivesse na AR quando essa questão foi votada, teria votado a favor da contagem do tempo de serviço dos professores. Essa é uma matéria fundamental para a dignificação da carreira dos professores, para a atratividade da profissão. Há muita falta de professores em Portugal.
Seriam só acordos pontuais, não seria um entendimento permanente.
Quanto à educação, deve haver uma reforma profunda. Aliás, tive o atrevimento de escrever um livro sobre educação do ponto de vista das políticas públicas (Um Novo Paradigma Educativo para Portugal no Século XXI), onde defendo também uma mudança na forma como se desenvolve o processo de ensino-aprendizagem. Temos de abandonar este modelo informacional e mecanicista baseado na memorização-repetição, que está completamente desajustado das necessidades do mundo de hoje. Precisamos de apostar na aquisição de competências, que são fundamentais e não se podem confundir com o conhecimento. Para que se tenha competências, tem de se ter conhecimento; é condição necessária, mas não suficiente. O que é uma competência? É a capacidade de aplicar o conhecimento à prática no sentido de resolver problemas concretos. O conhecimento per si não se traduz em valor económico. O conhecimento aplicado à prática, resolvendo problemas traduz-se, sim, em valor económico. O nosso modelo educativo tem de caminhar para aí, à semelhança do que estão a fazer, por exemplo, os países nórdicos.
Se houver uma nova geringonça, tem de haver um acordo escrito com tudo determinado?
Sim, claro. Caso venha a existir novamente, isso é fundamental para o seu sucesso eventual. É evidente que tem de haver acordos escritos, compromissos firmados com seriedade e com objetividade, para que possam até ser monitorizados, fiscalizados e, portanto, tenham uma aplicação que comprometa as partes.
Iria ao ponto de permitir que o PCP e o Bloco estivessem no Governo?
Não excluo de todo essa possibilidade. Acho-a altamente improvável, mas o PS deve ter uma política de geometria variável e deve procurar acordos quer à sua esquerda, quer à sua direita, de acordo com aquilo que são as necessidades estratégicas do país. Há matérias onde é fundamental um acordo com o PSD. A reforma do sistema eleitoral é uma delas. Aliás, é obrigatória, porque a lei eleitoral obriga a uma maioria qualificada de dois terços dos deputados. Só o PS e o PSD é que estão em condições de fazer essa reforma. Claro que até pode ser mais alargada, a outros partidos, mas estes dois partidos são fundamentais. Porque a reforma do sistema eleitoral é, na minha perspetiva, a mãe de todas as reformas, já que tem a ver precisamente com a qualidade da nossa democracia. Tem havido uma degradação da qualidade das nossas elites políticas, o que está, aliás, fundamentado e documentado em estudos internacionais. Ainda há pouco tempo saiu um estudo, produzido por uma rede de universidades, sobre a qualidade das elites, designadamente das elites políticas, que concluiu que as elites portuguesas políticas caíram a pique e estão numa posição de fronteira entre elites que aportam valor e elites extrativistas.
Ou seja, elites que se aproveitam do seu cargo, da sua posição?
Exatamente. São elites políticas que, de acordo com esse relatório, já estão muito próximas disso. Caímos muito no ranking de elites que de facto extraem mais valor do que aquele que aportam, o que é gravíssimo. Não é por acaso que o país está no estado em que está e não consegue atingir níveis mais ambiciosos de desenvolvimento. Não é por culpa dos portugueses, que são trabalhadores extraordinários. Aliás, basta ver o que se passa, por exemplo, no Luxemburgo, um dos países com maiores índices de produtividade do mundo, cuja força de trabalho é em um terço composta por portugueses. Portanto, o problema não está nos trabalhadores, não está nos portugueses. O problema está nas elites e nos governantes. Precisamos de melhorar a qualidade das elites políticas em Portugal e isso só se consegue com uma reforma do sistema eleitoral, colocando nas mãos dos cidadãos a escolha dessas pessoas, porque os cidadãos vão ser exigentes e vão querer provas de maior competência, de maior capacidade de trabalho. São os portugueses que têm de ter nas mãos a capacidade de poder decidir quem é que querem, efetivamente, que os represente; não este processo de seleção e recrutamento da classe política em Portugal que é feito hoje com base na fidelidade ao líder e no seguidismo cego - o que tem degradado em absoluto a qualidade das nossas elites políticas.
O PS será o mesmo depois do caso Influencer?
Não sei. À justiça o que é da justiça, à política o que é da política - é um mantra que foi instituído por António Costa e que subscrevo completamente. Sou contra a politização da justiça e a judicialização da política.
E o partido não sai fragilizado de todo deste episódio?
Separação total de águas. A política não tem nada que interferir na justiça e a justiça também não pode intervir na política. Cada um tem de fazer o seu trabalho, respeitando os tempos de cada uma destas instituições. Não podemos interferir no Ministério Público e no seu trabalho, nem nos tempos próprios do Ministério Público.
O PS não sai fragilizado desta situação?
Claro que sai. Há uma parte significativa do eleitorado do PS que está zangado com o PS. Aliás, as sondagens revelam isso, não é? Nas últimas eleições, o PS teve 41,5% das intenções de voto, e que percentagens é que tem agora tem as sondagens? Caiu a pique. Isso mostra um descontentamento muito grande dos portugueses face ao PS. Como disse há pouco, o PS teve um final que não foi feliz neste ciclo político.
José Sócrates tem dito que o PS se comporta como a vítima perfeita do Ministério Público, porque, diz, o PS não tem de interferir na justiça e a justiça não tem de interferir na política. Mas, depois, interfere porque houve uma decisão do Primeiro-Ministro que decorreu de uma decisão da justiça, de um comunicado.
O engº Sócrates não está nos órgãos nacionais do PS, mas eu estou e assisti aos discursos de diabolização do Ministério Público que houve nesses órgãos e não estou de acordo com isso.
Acha que José Sócrates foi vítima disso? Segundo esse discurso que fez contra o Ministério Público, houve uma vingança deste contra ele. Ou não põe as coisas assim?
Não ponho as coisas nesses termos. Acho que essas teorias são, de facto, teorias da conspiração. Não quer dizer que não haja pessoas no Ministério Público que possam não morrer de amores por alguns dirigentes do PS, mas acho que esses estados de alma estão longe de poderem interferir nas decisões da justiça. E, depois, há um conjunto de mecanismos de recurso... Acredito no Estado de Direito e acredito piamente na separação de poderes.
Deixe-me tocar noutra pasta da justiça. O Presidente da República será o mesmo depois do caso das gémeas luso-brasileiras no Hospital de Santa Maria?
Não, não será.
Que impacto é que poderá ter para a Presidência?
Este episódio é miserável e desacredita não só a presidência, mas também as instituições de soberania. É este tipo de episódios que degradam as instituições e que fazem os portugueses desacreditar na democracia. E esta é, precisamente, uma combustão que só alimenta os extremismos e os radicalismos e de que a extrema-direita precisa. É o pior que pode acontecer às instituições em Portugal. Precisamos de regenerar este regime, de erradicar de vez a corrupção, o compadrio, o amiguismo, o clientelismo, o nepotismo. Já chega, não pode haver mais disto em Portugal.
Ouvimos muitas vezes esse discurso da parte do Chega.
Têm de ser os partidos moderados a fazer essa regeneração. É por falta da ação dos partidos moderados que, de facto, a extrema-direita está a crescer. Algum português quer um país dominado pelo amiguismo, pelo clientelismo, pelo compadrio, pela corrupção? Há algum português que queira isso? Esta é uma questão do mais elementar bom senso e sentido patriótico. Isso, aliás, é outra das questões que tem contribuído para que o país não avance. Porque o país tem um conjunto de forças, muitas vezes ocultas, que capturam os recursos do país e que impedem o país de progredir. Temos de acabar com isso.
No calendário eleitoral, temos as europeias, as autárquicas e depois as presidenciais. Quem poderá vir a ser o melhor candidato do PS às presidenciais?
Anda não refleti muito sobre isso, mas sei que o PS não devia ter apoiado a recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. Nessa altura, avisei o partido de que era um erro muitos dirigentes do PS estarem embarcados na recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. E avisei que o segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa nada teria a ver com o primeiro mandato. Era fácil antecipar, não era preciso ser muito inteligente. No caso de Marcelo, era muito claro desde sempre que o Presidente da República, oriundo da direita, nunca quereria terminar as suas funções presidenciais e ficar para a história como o Presidente da República que tinha sido a muleta do PS e da esquerda. E, portanto, é natural que Marcelo Rebelo de Sousa, no fundo, no seu segundo mandato, fizesse tudo para acabar o mandato com a sua família política no poder.
Mas, Marcelo já não pode ser candidato. Portanto, quem é que poderá ser o candidato do PS?
Acho que há várias possibilidades.
Nas penúltimas e nas últimas presidenciais, o PS não apoiou. É imprescindível, no seu entender, que nas próximas eleições o PS tenha um candidato ou alguém em quem o Partido deposita apoio?
Acho que é importante voltar a ter isso. O PS não pode ter falta de comparência nas eleições presidenciais.
Augusto Santos Silva já se afirmou pré disponível, digamos assim.
As sondagens não têm a validade dessa candidatura.
Tem algum nome?
Não, não tenho nenhum nome.
Ana Gomes também tem sido um nome em cima da mesa. Apoia-a?
Apoiei convictamente Ana Gomes quando foi candidata presidencial. Acho que foi uma boa candidata presidencial e sinto-me honrado por tê-la apoiado.
Mas voltaria a apoiar Ana Gomes?
Se ela se disponibilizar, acho que é um nome que deve estar em cima da mesa. Mas esse é um processo que precisa de uma alargada discussão dentro do PS. Mais uma vez, acho que não é o líder do partido que tem de tomar essa decisão, que tem de ser debatida também com as bases do próprio partido envolvidas nesse processo de escolha. Agora, acho que há vários nomes que podem surgir e que devem ser avaliados.
Acha que está na altura de António José Seguro voltar à política ativa?
Tenho o maior respeito pelo meu camarada António José Seguro, acho que faz falta ao PS e é muito bem-vindo à política ativa.
Mesmo que não seja para liderar o partido, nem seja com uma ideia revanchista de vingar a sua própria derrota.
António José Seguro não é pessoa para revanches. É um militante que deu muito ao PS de forma abnegada e era muito importante que regressasse ao PS. É um grande ativo do PS.