'Daisy Bell' a canção que os computadores adoram
Em 1968, as salas de cinema acolhiam os quatro minutos da agonia derradeira do computador que chegava à Sétima Arte a bordo da nave espacial Discovery One, a caminho de Júpiter.
HAL 9000, personagem omnipresente de 2001: Odisseia no Espaço, película realizada por Stanley Kubrick, definhava nas mãos do capitão David Bowman. O "olho" rubro da máquina, dotada de inteligência artificial, iria cerrar-se em breve. Bowman cortava, à vez, os sistemas que alimentavam a "vida" de HAL. Este, argumentava a seu favor, até perceber vãs todas as palavras. Momentos antes de fenecer, o computador de voz fragilizada cantava para o seu carrasco. O refrão que Hall entoava viajara milhões de quilómetros, desde um ponto azul no sistema solar, até à nave nascida da escrita do britânico Arthur C. Clarke, autor do romance homónimo do filme.
"Daisy, Daisy/Give me your answer, do!/ I'm half crazy/All for the love of you!", entoava HAL, na voz emprestada ao ator canadiano Douglas Rain. A letra desvanecia-se no estertor do computador, perdendo-se no coro de fundo da balada entoada pelos motores da nave e na respiração ofegante do ator Keir Dullea. Este, emprestava o talento à personagem de David Bowman.
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HAL 9000 cantou-nos Daisy Bell, tema que nasceu da inspiração de um britânico dos idos de novecentos. O compositor Harry Dacre, pseudónimo de Frank Dean, compunha em 1882 a melodia que popularmente ficaria conhecida como a bicycle built for two ("bicicleta construída para dois"). Composição que vogou nas décadas posteriores nas vozes, entre outros, dos norte-americanos Bing Crosby e Nat King Cole ou da banda inglesa Blur.
Não foi, contudo, à voz humana que HAL angariou inspiração para cantar Daisy Bell. A máquina que, insistia no filme, "I"m sorry, Dave, I"m afraid I can"t do that", homenageava naquele 2001 ficcionado, uma anterior interpretação de um seu par.
Há 60 anos, em 1961, o computador IBM instalado no Bell Telephone Laboratories, centro de pesquisa em Nova Jersey, Estados Unidos, reivindicava o seu quinhão de um atributo até então exclusivo do ser humano. Na aurora da década de 1960, John Kelly e Carol Lochbaum programaram o IBM 704 para inaugurar uma nova era na computação, a sintetização da fala. Com o apoio de Max Mathews, pioneiro da música computorizada, a dupla de programadores encostou os ouvidos do mundo a uma versão de fala sintetizada de Daisy Bell.
Um ano depois, em 1962, Arthur C. Clarke maravilhava-se perante os dotes vocais do IBM 704. Seis anos volvidos, Clarke coautor do argumento de 2001: Odisseia no Espaço, incluía Daisy Bell na banda sonora do filme onde protagonizava a par da valsa de naves espaciais ao som do Danúbio Azul de Johann Strauss II.
Não obstante Arthur C. Clarke tê-lo negado, houve quem encontrasse no acrónimo HAL (Heuristically programmed ALgorithmic computer), similitude com um outro acrónimo, o da IBM (International Business Machines) e com esta a relação entre o computador considerado marco inicial da inteligência artificial no cinema. Cada letra de HAL antecede na ordem alfabética as letras de IBM.
Uma vez mais, em 2009, a letra de Daisy Bell viajava no tempo e na tecnologia desta feita à boleia do projeto bipartido entre Aaron Koblin e Daniel Massey. Com a dupla de artistas norte-americanos, a bicicleta para dois de Harry Dacre granjeava lugar para mais de dois mil passageiros. Partindo da sobreposição digital de 2088 vozes coligidas online, Koblin e Massey apresentavam na internet a peça Bicycle Built For Two Thousand. Os participantes, provenientes de mais de 70 países, desconheciam que participavam num projeto colaborativo.
<>trong>Na década de 1860, Harry Dacre também não poderia supor que o tema levemente satírico que engendrara após uma viagem aos Estados Unidos, viajaria até século XXI no argumento do filme de 2014, A Teoria de Tudo. Na película, o ator Eddie Redmayne interpreta a figura de Stephen Hawking, o físico e cosmólogo britânico, popularizado em livros como Uma Breve História do Tempo.
No filme assinado pelo realizador James Marsh, a personagem de Hawking, sozinho no escritório, testa o primeiro computador que lhe permitirá comunicar com o mundo através de fala sintetizada. Padecendo de doença neurodegenerativa, o físico digita num dispositivo de mão algumas palavras. O ecrã do computador ilumina-se com "Daisy, Daisy/Give me your answer, do!" e soletra as palavras a Stephen Hawking.