"Boa-noite. Eu só estou a ligar porque decidi que vou partir hoje. Já tenho tudo preparado e só queria ter alguém a quem dizer o que vou fazer." Do outro lado da linha telefónica estava Francisco Paulino, o presidente da direção da SOS Voz Amiga, a linha de apoio psicológico mais antiga do país (funciona desde 1978), que, em 2019, quase duplicou o número de chamadas atendidas. "Cá deste lado, ficamos com a vida daquela pessoa nas mãos", diz Francisco. A chamada é anónima. Quem atende não sabe de onde lhe telefonam e só tem uma única missão: ouvir a pessoa e tentar confortá-la.."Tentamos criar um momento de empatia para que a pessoa se sinta à vontade e nos conte, sem pressões, o que a levou até ali", explica Francisco Paulino, de 66 anos. Já pertence à equipa da linha há 22 anos, mas de todas as vezes em que levantou o auscultador nunca soube o que iria encontrar. E se às vezes ainda lhe concedem tempo, como na chamada anterior, outras vezes é procurado com urgência, até pelas autoridades, para evitar o pior. Já respondeu ao 112 em situações críticas. Numa dessas alturas, colocaram-no ao telefone com uma senhora, dentro de um carro, à beira de um precipício. Tinha lidado com sucessivas rejeições e naquele dia atingira o limite. "Pedi-lhes meia hora. Não era boa ideia a pessoa ouvir as sirenes, naquele momento. Fui falando com a senhora, ela foi acalmando e pouco tempo depois dizia-me: vem aí a policia, o que é que eu faço? Não faz nada. A polícia é nossa amiga. Eles vão parar aí e como já é tarde vão perguntar se precisa de ajuda. Nessa noite não aconteceu o pior", recorda. Nem todas as conversas tiveram um final feliz. Das que não tiveram ainda não consegue falar, apesar do apoio que todos os 30 voluntários recebem de psicólogos e em reuniões de equipa regulares..Para fazer parte da equipa é preciso passar por uma série de testes e completar um programa de formação, mas ser voluntário na SOS Voz Amiga não exige formação especifica na área de psicologia. Isabel Pereira, de 54 anos, é gestora e voluntária na associação sem fins lucrativos há cinco anos. "Quando estamos na linha, despimo-nos de tudo e somos só nós. Quem é médico, psiquiatra, psicólogo não se porta como na sua sala", conta..Tal como todos os voluntários cumpre apenas três turnos mensais, por causa da exigência do trabalho.Uma das histórias que mais a marcou foi também a de alguém que quis pôr fim à vida, embora os casos diretamente relacionados com suicídio representem 7% das chamadas. Uma jovem fez um direto nas redes sociais, onde aparecia a desabafar, e os internautas, atrás de um ecrã, aconselharam-na a suicidar-se. A rapariga chegou a ir até a uma ponte, mas foi travada a tempo por uma pessoa que parou o carro para a dissuadir, lembra Isabel, que recebeu um telefonema da jovem, pouco depois..O que acontece após desligarem raramente sabem, a não ser que lhes escrevam ou telefonem para agradecer. Mas algumas histórias não esquecem. "O tempo vai ajudando. Até porque nem sempre estamos bem connosco. Claro que nestes cinco anos aconteceram muitas coisas, pessoais, profissionais, de saúde, e, claro, quando não estamos bem fazemos uma pausa", refere Isabel Pereira..A linha SOS Voz Amiga (213 544 545) funciona todos os dias entre as 16.00 e a 00.00. Em 2019, atenderam 6270 chamadas, sendo que destas apenas quatro foram registadas como "brincadeiras". No ano anterior, tinham sido 4020. Em 2017, 3335..Copy: total_chamadas Infogram.O principal motivo é a solidão.A linha recebe chamadas de todos os tipos, mas a maioria refere-se a situações de solidão. Depois, a depressão (que há uns anos nem sequer era contabilizada, recorda Francisco Paulino), problemas afetivos, familiares, económicos, dependências, violência, luto e suicídio. "Independentemente do motivo atendemos todas as chamadas da mesma forma, com toda a disponibilidade", garante o presidente..total_chamadas Infogram."Havia uma senhora que, durante muito tempo, ligava por volta das 22.00 e dizia sempre: Desculpem estar a ligar. Eu sei que têm outras coisas mais importantes do que a minha situação. Mas eu vivo sozinha, queria ir deitar-me e não tenho ninguém a quem dizer até amanhã. Ou outro homem que ligou e disse: Boa-noite. Eu faço 40 anos e ainda ninguém me deu os parabéns. Isto são imagens de uma solidão extrema. Como é que se convive com isto?", pergunta Francisco Paulino..Quem liga mais são as mulheres (representam 58% das chamadas), apesar de "ultimamente os homens terem descoberto que não faz mal nenhum contar a alguém que estão em sofrimento". 25% têm entre os 46 e os 55 anos, mas o número de jovens a telefonarem aumentou (até aos 18 anos representam 3% das chamadas e entre os 18 e os 25 anos são 20%). A associação acredita que este crescimento se deveu à campanha Dê Voz à Saúde Mental, um protocolo com a Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa..Linhas de ajuda.A SOS Voz Amiga é a mais antiga linha de apoio psicológico do país. Foi criada pela Liga Portuguesa de Higiene Mental, em 1978, por inspiração britânica. Em Londres já existia desde 1955, quando um pastor anglicano se apercebeu do aumento de suicídios de pessoas com doença mental no pós-II Guerra Mundial (1939-1945). O religioso disponibilizou, através dos jornais, o seu contacto pessoal às pessoas que se sentissem sozinhas e quisessem falar. As chamadas foram tantas que teve de pedir ajuda para aumentar o ritmo de resposta..Hoje, em Portugal, para além da SOS Voz Amiga existem mais três números com o mesmo objetivo, dois no Porto (o Telefone da Amizade e a Voz de Apoio) e um em Coimbra (SOS Estudante).