Da política à religião. O inusitado caminho do cardeal Américo

"Acredito que [o trabalho na JMJ] tenha tido peso na decisão inesperada do Papa Francisco para aquele anúncio, que me surpreendeu e surpreendeu a todos." Não há como negá-lo. O bispo Américo Manuel Alves Aguiar, 49 anos, recentemente nomeado bispo de Setúbal, torna-se este sábado um dos mais jovens cardeais da Igreja, no consistório convocado para Roma pelo Papa Francisco (o 9.º do seu pontificado), um português entre os 21 novos cardeais. E assim, Portugal passa a contar com seis cardeais, quatro deles eleitores: Américo Aguiar junta-se a Manuel Clemente (até há pouco patriarca de Lisboa), António Marto (ex-bispo de Leiria-Fátima) e ainda Tolentino de Mendonça, que desde 2018 foi nomeado arquivista e bibliotecário do Vaticano..Há vários dias que Américo Aguiar está em Roma, em preparação para o consistório. Quase parece outro homem, diferente daquele que assumiu a coordenação da Jornada Mundial da Juventude. "Está mais magro...", observava o presidente do Futebol Clube do Porto, quando se cruzou com ele num restaurante da região, num encontro com a jornalista Fátima Campos Ferreira, a propósito do programa Primeira Pessoa, da RTP, emitido esta semana. Esse é o lado visível do desgaste que o evento lhe terá provocado, mas haverá outro(s), sobre o qual não fala - o efeito do jet-lag, nas muitas e longas viagens de avião que fez para percorrer o mundo, com os símbolos da Jornada..É a essa disfunção que os mais próximos atribuem, não raras vezes, à forma (mais do que o conteúdo) das declarações à imprensa, algumas mal recebidas no seio da Igreja Católica. De resto, Américo é, dentro de muros católicos portugueses, um tanto mal-amado, nomeadamente pela ala conservadora da Igreja. E sabe disso. Na entrevista publicada recentemente, e que concedeu em conjunto às agências Ecclesia e Lusa, o novo cardeal assume-o sem qualquer pejo. "Dentro de casa, há reações que não são justificáveis: é importante educarmo-nos mutuamente, sermos pedagógicos para nos respeitarmos e nos amarmos", afirmou, quando questionado sobre manifestações de alguns setores da Igreja Católica contra afirmações que fez durante a preparação da Jornada Mundial da Juventude, nomeadamente que não queria "converter os jovens a Cristo ou à Igreja". "A nossa obrigação é a evangelização, é anunciar a Boa Nova, Cristo Vivo. As conversões, é Cristo que opera no coração de cada um. Não sou eu que realizo a conversão no Manuel, António ou a Maria... É Deus que o faz! As conversões acontecem ao nível do coração de cada um. A minha obrigação, a minha missão, a minha vocação é anunciar, é a evangelização. E a evangelização não choca com este caminho que queremos fazer de fraternidade universal", sublinha..Nesse retrato televisivo mais recente, as imagens mostram-no sob várias formas, ao longo dos últimos 22 anos de vida pública. Primeiro o jovem socialista que os outros achavam "um fundamentalista ambiental" e que, além de trabalhar na autarquia de Matosinhos, foi também membro da Assembleia de Freguesia de Leça do Balio (de onde é natural) e depois da Assembleia Municipal. De resto, a nomeação de Américo para cardeal fez o ex-presidente daquela autarquia, Narciso Miranda, sair da sombra para enaltecer o rapaz que conhece desde os Anos 80, dos Escuteiros - a porta de entrada na Igreja, afinal.."Eu tinha a perceção de que isto ia acontecer e comentei isso com o Américo muitas vezes. Quando ele foi nomeado bispo, eu já andava há dois anos a dizer que ele ia ser bispo, ele ria-se. Ele é um homem muito lúcido, solidário, generoso, inteligente, combativo, homem de consensos, de pontes e de diálogo. Gostava muito de Ambiente e Cultura. A política ficou a perder, a Igreja a ganhar", disse o antigo autarca, em entrevista à TSF. Afinal, Narciso foi uma espécie de confessor de Américo, naqueles idos de 90, quando o agora cardeal decidiu seguir a vida religiosa e entrar para o seminário. Tinha dúvidas, e por isso quis ouvir "alguém que não fizesse parte da Igreja"..Destaquedestaque"É um homem muito lúcido, solidário, generoso, inteligente, combativo, homem de consensos, de pontes e de diálogo", diz Narciso Miranda.."Fomos jantar e ele pediu-me conselho sobre ir para o seminário. Muitos já tinham a perceção de que ele seria um homem excelente para trabalhar em nome da Igreja. Eu disse-lhe: "Com a idade que já tens, já tens uma dúvida que está muito amadurecida. Não hesites. Vai e vai já"." E ele foi..Entre essa decisão (madura) e a chegada ao colégio cardinalício passaram menos de 30 anos. Américo Aguiar foi ordenado padre em 2001. E foi no (seu) Porto que passou os primeiros anos de sacerdócio, com relevo para a presença no Paço Episcopal. Foi a partir daí que dirigiu o Departamento de Comunicação da Diocese, desempenhou funções de vigário-geral, chefe de Gabinete dos bispos Armindo Lopes Coelho, Manuel Clemente e António Francisco dos Santos, além de capelão-mor da Misericórdia do Porto. Nesse tempo acumulou funções com as de vice-reitor do Santuário de Santa Rita, em Ermesinde. E foi pároco da Sé. Depois de presidir à Irmandade dos Clérigos e dirigir o Secretariado Nacional das Comunicações Sociais, chegou à liderança do Conselho de Gerência do Grupo Renascença. Nomeado Bispo a 1 de março de 2019, experimentou, no final desse mês, uma dura provação: de manhã, fez o funeral da mãe; à tarde, na Igreja da Trindade, realizou-se a cerimónia que o tornaria bispo. Daí seguiu para Lisboa, onde, no mesmo dia, assumiu funções de bispo auxiliar. E nessa senda de cavaleiro andante assumiu a organização da JMJ.."O facto de ter tido, seis, oito, 10, 12 audiências privadas com o Papa ao longo destes quatro anos, levou a que ele me mirasse, tirasse as medidas e decidisse o que decidiu", considera Américo Aguiar. Admite que a primeira reação "foi de medo, de incapacidade". Mas sabe que, quando tem um desafio pela frente, entrega-se "na totalidade"..Nessa longa entrevista à Lusa e à Ecclesia, o novo cardeal descodifica o que irá na intenção de Francisco - com quem tanto se identifica: "Nas suas últimas nomeações, o Papa tem reforçado muito isso: não é poder, não é fausto, não é nada disso; [os cardeais] são aqueles que ele chama mais proximamente para junto de si, sem ser até geográfico, para o Governo da Igreja, para ter mais perto as sensibilidades, seja da idade, seja da geografia e de tantas outras circunstâncias." E ele, o rapaz de Leça do Balio, último de sete irmãos, numa família de operários, está posicionado para fazer essa construção..paula.sofia.luz@ext.dn.pt

Da política à religião. O inusitado caminho do cardeal Américo

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