Da memória e do exemplo
Há muitos anos que não ia a Fátima nestes dias grandes de peregrinação. E, no entanto, tudo aquilo que ali se vê e sente regressa instantaneamente pela memória. A procissão das velas ou a procissão do adeus são dois momentos em que os olhos se fixam numa imensa esplanada de gestos repetidos, quase banais, mas que emocionam - também por essa memória que regressa. Há as velas que pintam a noite, há os lenços que se acenam, sempre embalados por cânticos ou silêncios ou orações.
Isto é Fátima, de uma beleza que faz brilhar e que se ajusta à imagem de Francisco sobre a Igreja, repetida no final da homilia de canonização das duas crianças: de que esta só "brilha" quando "é missionária, acolhedora, livre, fiel, pobre de meios e rica no amor".
A outra Fátima está ali logo ao lado, passado o recinto, cheia de comércio tão necessário para a economia, como desastroso na estética mil vezes repetida de senhoras que brilham e outras quinquilharias. Já foi pior, dizem-me, podia ser melhor, muito melhor. Falta quem mostre que pode ser diferente - e não sei se o terço em versão gigante de Joana Vasconcelos ajuda a que seja diferente.
Como se vê, os exemplos dão frutos, para o mal e para o bem. O bem, neste caso, anda muito escondido, ainda que a basílica da Santíssima Trindade seja muito mais bonita que a antiga do Rosário. Sobra a esta em imponência o que lhe falta em beleza. Uma procissão das velas ou uma procissão do adeus não se replicam - e ao cuidado na musicalidade nem sempre corresponde o mesmo nas palavras que acompanham os cânticos.
Os exemplos darão frutos, é isto que retiro do que ouvi ao Papa Francisco nesta sua peregrinação a Fátima. De Jacinta e Francisco Marto preferiu sublinhar a alegria própria de miúdos, mesmo que a história das crianças pastoras seja feita de sacrifícios inadequados. Também eu preferia que os santos da Igreja se apresentassem como exemplos de vida e não como prescrição de uma qualquer cura explicável ou não - ainda que a alegria do pequeno Lucas seja uma alegria contagiante, os olhos a olharem o Papa, os braços estendidos, o rosto esticado, os pezinhos a levantarem-se para melhor abraçar Francisco.
O Papa não quis deixar de dar outros exemplos de um mundo que vive uma miragem distante da paz, no qual "milhões de pessoas vivem ainda no meio de conflitos insensatos", surpreendidos que somos "pelo drama dos deslocados que fogem da guerra ou dos migrantes que morrem tragicamente".
Se os milhares que ouviram Francisco retiveram pelo menos algo disto para as suas vidas, se não se ficarem pelas senhoras fluorescentes ou pela beleza da procissão das velas e da procissão do adeus, então a viagem do Papa terá valido a pena. Para mim, valeu - e é um exemplo.