"Não temos preconceito contra ninguém, mas temos uma profunda repulsa por quem não é brasileiro", disse Jair Bolsonaro, no dia 23 de julho durante a inauguração de um aeroporto na Bahia. A frase do presidente, proferida a meio de um dos habituais ataques a Organizações não Governamentais (ONG) de preservação ambiental, ganha atualidade numa altura em que o governo do Brasil acumula atritos com o mundo, nomeadamente com o presidente francês Emmanuel Macron..Macron disse nas últimas horas que espera que o Brasil "tenha rapidamente um presidente que se comporte à altura do cargo". Antes, Bolsonaro reagira a um comentário de um apoiante numa rede social, que exaltava a suposta beleza de Michelle Bolsonaro por contraste com Brigitte Macron, nos seguintes termos - "kkkkkk [sinal de gargalhada], não humilha cara". Pelo meio, o ministro da Educação brasileiro, Abraham Weintraub, chamou o chefe de Estado francês de "calhorda, oportunista e cretino"..Se a questão da Amazónia, por ser a mais recente e por representar drama capaz de comover o planeta, é a mais falada controvérsia internacional do presidente brasileiro, está, no entanto, longe de ser a única. "Ele já se envolveu com o Irão, com políticos de centro-direita, como Angela Merkel, com políticos de centro, como Macron, ou com a Noruega, membro da EFTA [Associação Europeia de Livre Comércio]. Como vamos negociar com a EFTA estando em pé de guerra com a Noruega, por exemplo?", questiona-se Vinícius Vieira, professor de Relações Internacionais da faculdade Getúlio Vargas, em conversa com o DN..Em artigo no jornal digital Poder360, o articulista Thomas Traumann, ministro da Comunicação do segundo governo de Dilma Rousseff, do PT, recorda que "desde que tomou posse, Bolsonaro ofendeu ou criticou os seguintes países ou seus dirigentes: Alemanha, Argentina, China, Cuba, França, Irão, países árabes, Noruega e Venezuela. Suponha que um democrata vença as eleições americanas de 2020 e o Brasil virará um pária".."Sem entender o que representa a Amazónia para a sobrevivência do planeta, o governo de Jair Bolsonaro caminha para se transformar em uma espécie de estado pária, pelo menos no setor ambiental", escreveu, ainda antes da comoção atual com a floresta, o jornalista do UOL, radicado em Genebra, Jamil Chade. "Em apenas uma semana, Brasília perdeu mais de 280 milhões de reais [cerca de 70 milhões de euros] que seriam destinados à proteção da floresta. Mas, acima de tudo, os atos de congelamento de recursos de Noruega e Alemanha significam que a comunidade internacional entendeu que não poderá mais passar panos quentes ou amenizar o que está ocorrendo no Brasil", continuou.."Não preciso da grana".Svenja Schulze, ministra do Meio Ambiente alemã, anunciou a suspensão de doações para proteção ambiental no Brasil, no valor de 35 milhões de euros, e disse estar a avaliar a continuidade no Fundo Amazónia, instituição criada em 2008 pelo governo do então presidente Lula da Silva que já rendeu 3,4 mil milhões de reais [em torno de 800 milhões de euros] ao país, dada a política de Bolsonaro para o setor. Em resposta, o presidente disse que "não precisa dessa 'grana'" e que a Alemanha pode "utilizá-la a reflorestar o país deles". Mais tarde, afirmou que o Brasil não tem recursos para combater os incêndios na Amazónia..Maior financiadora do Fundo Amazónia, com 93% das verbas, a Noruega também bloqueou as transferências. Bolsonaro reagiu, via Twitter, publicando um vídeo supostamente constrangedor para o país escandinavo, com música melancólica de fundo e imagens de caça a baleias - no entanto, a peça refere-se a um festival ocorrido nas Ilhas Faroe, o que gerou piadas no Brasil e no estrangeiro.."Ele é muito mal assessorado, o principal assessor para a área das relações internacionais é Filipe Martins, que tem 31 anos, quando há uma tradição anterior de assessorias dos presidentes de pessoas muito graduadas, muito experientes, tanto em governos à direita como em governos à esquerda", explica Vinícius Vieira. "Por outro lado, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ernesto Araújo, que até era considerado um profissional de carreira sério, surpreende que tenha aderido com tanto entusiasmo ao bolsonarismo e as suas teses obscurantistas religiosas e outras", prossegue..Traumann nota "a péssima imagem do Brasil no estrangeiro". "Depois dos britânicos The Guardian e The Economist, foi a vez da alemã Der Spiegel propor um boicote a produtos brasileiros pela desastrosa política ambiental. Ex-ministros da Agricultura (...) alertaram publicamente sobre a possibilidade de os europeus criarem salvaguardas contra produtos brasileiros.".O corte de cabelo.Antes dos governos norueguês e alemão, já fora a vez de o francês ter sido alvo de Bolsonaro. Em visita ao Brasil, o ministro dos Negócios Estrangeiros Jean-Yves Le Drian viu o seu encontro de 30 minutos no Palácio do Planalto cancelado. À hora marcada, entretanto, o presidente da República cortava o cabelo, ao vivo na internet, enquanto defendia a tese de que o desaparecido político Fernando Santa Cruz, dado oficialmente como morto e torturado na ditadura militar, tinha afinal sido assassinado pela oposição ao regime..Le Drian, que é calvo, ironizou: "Houve uma emergência capilar, situação estranha para mim", afirmou. A motivação de Bolsonaro para o que foi descrito como "uma desfeita" na imprensa francesa, foram as reuniões anteriores do ministro gaulês com ONG brasileiras críticas do governo.."Numa campanha permitem-se certos arroubos que na condução de um país já não são permitidos", lembra Vinícius Vieira sobre este e outros casos. "Não é muito normal este tipo de atitude mas também não é muito normal termos um presidente com este perfil, para começar. Já tivemos presidentes militares, mas generais com formação e visão estratégica que, com todo o respeito, me parecem faltar ao atual presidente.".Má vizinhança.Na semana passada, ao comentar as primárias argentinas, que deram vantagem ao peronista Alberto Fernández, o presidente brasileiro disse que "se a esquerdalha vencer, o Rio Grande do Sul [estado fronteiriço] vai virar um Roraima [estado na fronteira com a Venezuela onde chegam refugiados do governo de Nicolás Maduro, na Venezuela]"..Fernández que bateu Macri, aliado de Bolsonaro, disse que não ia responder para não comprometer a relação comercial entre os dois países. No meio do atrito, o ministro da Economia Paulo Guedes disse que "o Brasil não precisa da Argentina para crescer", apesar de o vizinho ser o terceiro maior parceiro comercial do país, e ameaçou com uma saída da Mercosul, mesmo tendo em conta o recente (e festejado) acordo do organismo com a União Europeia..Citado pelo jornal O Globo, o presidente da Associação Brasileira da Indústria do Trigo, Rubens Barbosa, alertou que em caso de rutura com o Mercosul "até o pão vai aumentar". O país importa metade do trigo que consome e, dessa metade, 86% é argentino..Ainda na América do Sul, em visita ao Chile, Bolsonaro embaraçou o presidente e aliado Sebastián Piñera por ser adepto do ditador Augusto Pinochet. "É especialmente desconfortável para um presidente de direita democrático ter alguém mencionando Pinochet com uma conotação positiva. Para a direita chilena, tem sido difícil se afastar do fantasma de Pinochet. Ninguém à direita está feliz porque Bolsonaro está nomeando Pinochet. Isso atinge o governo. Isso faz que ele se sinta desconfortável", disse o cientista político chileno Patricio Navia, professor da Universidade de Nova York, ao jornal O Estado de S. Paulo..Na América Latina, a Venezuela, contra a qual deixou nas entrelinhas a intenção de uma eventual intervenção militar, caso os Estados Unidos assim o entendessem, é alvo comum de Bolsonaro, assim como Cuba, com que rasgou o acordo Mais Médicos, que levava clínicos aos pontos mais recônditos do Brasil, ainda antes da tomada de posse..Guerra santa.O alinhamento com os Estados Unidos - Donald Trump é a maior referência internacional de Bolsonaro - esteve ainda na base de outro incidente diplomático. Como a Casa Branca, o Palácio do Planalto também propôs mudar a embaixada em Israel de Telavive para Jerusalém. Acabaria por recuar, abrindo apenas um escritório comercial na cidade, após os países árabes, responsáveis por um quinto do total das exportações de carne brasileira, se rebelarem..Para controlar os danos provocados pelo presidente, o "vice" Hamilton Mourão teve de receber representantes de países do Médio Oriente e a ministra da Agricultura Tereza Cristina foi obrigada a reunir-se com 51 embaixadores dessa região. "Existe, é claro, um desconforto, mas as relações vão continuar no que depender de mim, como ministra da Agricultura, vamos continuar fazendo que cresça essa cooperação comercial entre os países do mundo árabe e do Brasil."."A noção de soberania de Bolsonaro é tão restrita que faz também, por sua vez, restringir a força do Brasil", assinala Vinícius Vieira..Com o Irão, foi novamente o alinhamento brasileiro aos Estados Unidos a causar um conflito diplomático. Dois navios iranianos ancorados em frente ao porto de Paranaguá, no Paraná, não puderam voltar ao seu país porque a estatal Petrobras, temendo as consequências das sanções norte-americanas a Teerão, se recusava a fornecer-lhes combustível. Apesar de transportarem milho e de alimentos e remédios estarem, em princípio, excluídos das sanções, Bolsonaro foi claro. "Vocês já sabem que estamos alinhados com a política dos Estados Unidos, então fazemos o que temos de fazer", afirmou..O dragão.Com a China, maior parceiro comercial do Brasil, os conflitos começaram logo em campanha e imediatamente após a eleição. Bolsonaro, que visitara a província rebelde de Taiwan, retratou o dragão asiático como um predador, sugerindo que os investimentos chineses significavam uma tentativa de "comprar o Brasil" e não "de comprar no Brasil"..Já neste ano, o deputado Eduardo Bolsonaro afirmou que a China era a maior parceira comercial do Brasil por "motivos ideológicos". E antes o ministro Ernesto Araújo dissera que o governo está aberto a negociar mas que não vai "vender a alma". Tanto Eduardo como Araújo pertencem à ala do governo mais próxima do guru da direita brasileira Olavo de Carvalho. A outra ala, representada pelos generais, considerada mais pragmática, e representada pelo "vice" Mourão, tenta manter canais de diálogo com os chineses..Lembra Vieira, especialista em relações internacionais, que "a tradição dos governos militares era pragmática, positivista e a tradição dos governos não militares era sempre a de ter como ministros dos Negócios Estrangeiros pessoas, diplomatas ou não, respeitadas e de muita experiência, a questão aqui não é ser de direita ou de esquerda, conservador ou progressista, é a de ser muito despreparado".