"D. Pedro sentia-se muito mais um militar do que um monarca"

No ano em que se assinala o bicentenário da independência do Brasil, há um filme que retrata D. Pedro na vertigem da ambição entre dois países. <em>A Viagem de Pedro</em> chega às salas na próxima quinta-feira. O DN falou com a realizadora, Laís Bodanzky, em Lisboa.
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Está um dia soalheiro e ouvem-se muitas vozes à nossa volta no terraço da Biblioteca Palácio Galveias onde conversamos. Vozes de línguas diferentes, como na fragata que em 1831 levou D. Pedro (I do Brasil, IV de Portugal) rumo à Europa, para lutar contra o irmão D. Miguel pelo trono de Portugal. Laís Bodanzky pede, a certa altura, para nos sentarmos mais afastadas de um jovem italiano que ali ao lado fala entusiasticamente ao telemóvel, porque lhe está a cortar o raciocínio: uma situação que se assemelha com o quotidiano no set de A Viagem de Pedro e o seu elenco multilingue. A realizadora brasileira fala-nos desse ambiente de rodagem, de um "filme experiência", coprodução entre Brasil e Portugal - com Victoria Guerra a interpretar D. Amélia, a segunda esposa de D. Pedro -, e de uma personagem histórica que "viveu intensamente". Intensidade assumida por Cauã Reymond, o ator brasileiro que dá corpo e alma (atormentada) a este imperador, enquanto revisita momentos da sua vida e projeta o futuro numa viagem marítima que agita as águas da mente e inquieta os desejos da carne. "O espectador é convidado a embarcar", diz Bodanzky.

Há uma notícia recente de que o Brasil pediu uma transladação temporária do coração de D. Pedro, que está no Porto, para as comemorações dos 200 anos da independência. Como é que vê este pedido?
Tenho várias observações... Importa começar por perceber porque é que o coração de D. Pedro está na cidade do Porto e não no Brasil. E a razão é esta: foi um pedido do próprio D. Pedro. Bem perto da morte, ele pediu que o seu coração ficasse no Porto e o corpo fosse sepultado no Brasil, porque, apesar de se sentir brasileiro, ele nasceu aqui em Portugal. Mais do que isso, queria o coração no Porto porque era uma forma de agradecer às pessoas dessa cidade que lutaram com ele contra o irmão e venceram, por resistência e estratégia militar, uma guerra quixotesca que parecia absolutamente impossível de vencer. Portanto, um agradecimento simbólico a Portugal, mas principalmente aos cidadãos do Porto. Temos aqui então, em primeiro lugar, o facto de ser um pedido do próprio, que tem um significado e que deve ser respeitado - não estamos a falar de uma decisão exterior a ele. Repare-se que D. Pedro sentia-se muito mais um militar do que um monarca, disse isso em vida. Daí que vencer esta guerra tenha representado quase um ponto culminante; ele queria tirar Portugal do obscurantismo. E o Brasil também é um país continental por causa dessas qualidades militares dele, e dos seus desejos - era um homem de muitos desejos. O maior de todos eles era ter um grande império como Napoleão, razão pela qual o Brasil não se despedaçou em pequenas regiões como aconteceu com a América Latina... Mas voltando à questão do pedido da embaixada brasileira, ele é inusitado, primeiro, por não respeitar o próprio homenageado, e é um pedido ufanista de um governo de extrema-direita e de um Brasil-colónia que se diz independente de Portugal, mas se você revisitar a História, essa independência foi à custa de muita opressão, de classes sociais e diferenças raciais de um Brasil escravocrata, que nunca se tornou de facto independente. Temos uma elite económica, ainda hoje, tomando as decisões, e a grande maioria do povo numa eterna colonização. Nessa medida, o povo brasileiro celebra este bicentenário da independência por uma imposição dos livros de História - na realidade não está a comemorar. Pergunto eu: comemorar o quê? Acho que este é muito mais um momento de reflexão.

Não é por um coração mas pelo simbolismo das estátuas que começa o seu filme. Pergunto-lhe se o desejo que D. Pedro tinha de vir a ser honrado com uma estátua, como Napoleão Bonaparte, se tornou uma ansiedade carnal ao longo da sua vida.
D. Pedro era um homem de ideias, mas, ao mesmo tempo, o seu ego era ainda maior do que as ideias. O seu desejo pessoal estava antes de tudo - o que também explica que a ambição desmedida tenha levado à sua própria derrocada. Essa questão da carne, do corpo, tem muito que ver com o ímpeto militar que referi. Ele era daqueles que fazem as coisas com as mãos. Gostava de marcenaria, gostava de cavalgar, quando ia para a guerra, ia para a frente de batalha (tinham de o puxar para trás)... E isto reflete-se num excesso que o poder potenciou, ao ponto de ele ter deixado de ver a dor do outro, inclusive das mulheres.

As personagens femininas aqui também mereciam estátuas...
Sem dúvida nenhuma. Aliás, basta lembrar que o decreto da independência propriamente dito foi assinado pela Leopoldina [na condição de princesa regente interina do Brasil], que de facto era uma mentora intelectual do marido D. Pedro. Ela e José Bonifácio. Então se é para reverenciar a independência formal, teríamos de reverenciá-los também... Mas ainda sobre a questão do corpo impetuoso de D. Pedro, a maneira como ele sai do Brasil numa crise política, ele sai também numa crise de saúde. Não há certezas, mas ele apresentava todas as características de uma pessoa que tinha sífilis. Mais uma vez, pelo excesso!

Este é um drama histórico, mas ao mesmo tempo não é bem isso, porque aproveita uma ausência de registos para explorar a "viagem mental" de D. Pedro, no contexto da sua travessia do Atlântico. Haverá outras lacunas históricas, porque é que escolheu esta para o retratar?
Talvez esta seja a maior lacuna. Se pegarmos nos livros de história, há sempre um parágrafo que relata a saída de D. Pedro, o embarque, e no parágrafo seguinte: "...Então eles chegaram." [risos] E nada sobre a viagem. Há este limbo numa personagem entre dois mundos tão importantes para ele, dois grandes desejos. Um limbo que corresponde a um momento em que ele não tem nem o Brasil nem Portugal, ou seja, o Brasil não o reconhece como brasileiro e de Portugal já tinha pouca memória, estava a ir para uma terra com a qual perdeu o contacto. Isto coloca a personagem numa situação de muita dúvida e insegurança, precisamente quando ele tem de estar o mais seguro possível porque vai para uma guerra, apesar de não ter dinheiro, exército ou apoio político - é um momento de extrema fragilidade. Tudo isto está relatado, a viagem não. Mas como o entorno está bem registado, é possível concluir um pouco qual era o sentimento dele enquanto pessoa, o seu estado de espírito nesses dois meses no Atlântico. Interessou-me esta circunstância de fragilidade para desvendar a imagem da estátua do herói: em Portugal, visto como um herói mais clássico, no Brasil, como um herói mais fanfarrão. A visão dos brasileiros ficou presa a uma caricatura do imperador, que não tem em conta o intelectual e estrategista. Isto porque ele teve a sua imagem minada por uma elite económica que já não o queria mais. Assim: "Você já fez o que nós precisávamos, deu-nos a independência, agora o teu projeto de país não nos serve." Ele não tinha mais apoio político, sai do Brasil praticamente expulso. E no entanto o seu projeto era interessante... Com certeza muito melhor do que o que ficou.

Há qualquer coisa de "Torre de Babel no alto mar" em A Viagem de Pedro. Foi uma forma de trazer a representação do seu país para o microcosmo de um barco?
Isso mesmo. Quando D. Pedro sai do Brasil, leva aquele mundo com ele. A embarcação representa o que era o Brasil naquela época, com as suas várias camadas sociais e relacionamentos. Um Brasil multicultural - a maior parte da população era gente escravizada vinda de várias regiões de África, com as suas línguas diferentes - e que era passagem de várias embarcações do mundo, cuja língua protocolar era o francês. Neste caso, a embarcação era inglesa e os ingleses tinham todo o interesse em que acabasse a escravidão no Brasil, não por uma questão de direitos humanos mas por simples interesse económico: eles estavam a iniciar o seu processo de industrialização e queriam uma população endinheirada que comprasse os seus produtos... Mas então a ideia foi também, através de uma personagem histórica, representar o Brasil daquela época que não está nos livros. Só agora os historiadores contemporâneos estão a revisitar a história destes oprimidos, e mesmo das mulheres. Por isso foi difícil construir estas personagens, que eu queria que tivessem nomes, medos, angústias, desejos, sonhos... Como o próprio D. Pedro, que neste filme é simplesmente Pedro.

Cauã Reymond está de corpo inteiro nesta personagem, e entra também como produtor. Qual foi o papel dele no projeto em si?
Ele é o motor do projeto. O convite para que eu realizasse e escrevesse esta história partiu dele. Incentivou-me a deixar de parte uma abordagem clássica e, tendo como referência o meu filme anterior [Como Nossos Pais], a trazer a minha reflexão enquanto mulher cineasta. Ele aceitou o meu olhar crítico sobre esta personagem tão interessante, este corpo fazedor que viveu intensamente até aos 35 anos...

No filme, a imagem de D. Miguel é muito fria. Como se D. Pedro, também pelos seus ideais e apesar dos seus defeitos, fosse mais humano.
Essa visão mais gelada do irmão é porque nós conhecemo-lo neste filme através do pensamento de D. Pedro. Se o filme fosse sobre D. Miguel, teríamos de dar conta da complexidade dele. D. Miguel era reconhecido e adorado por muitos portugueses, o que tornava a vontade de D. Pedro ainda mais complicada, porque ele vinha para um país que... será que queria sair mesmo do obscurantismo?

Como foi trabalhar com um elenco tão diverso?
Foi incrível. A rodagem foi também um pouco a tal Torre de Babel de que você falava. Todo o mundo tinha um bocadinho de dificuldade na comunicação... [risos] E isso tornou a experiência mais rica. Tínhamos atores do Congo, Moçambique, Guiné, Portugal, havia também um irlandês, Francis Magee, uma alemã, Luise Heyer [Leopoldina], que falava uma língua [português] com a qual não tinha nenhuma intimidade... Mas mais do que a língua, eram as diferenças culturais que conviviam. Eu acho isso bonito, a mistura cultural.

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