D. António Marto: "Será que o Papa morreu?"

Num almoço em sua casa, o agora cardeal conta ao DN o primeiro pensamento que teve quando olhou para o telemóvel e viu as chamadas perdidas da Nunciatura Apostólica três minutos antes de celebrar a missa de Pentecostes. Faz hoje um mês que recebeu as insígnias cardinalícias
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Naquela manhã de Pentecostes não lhe passava pela cabeça o que iria acontecer cinco minutos antes de subir ao altar da Sé de Leiria para celebrar a missa e crismar 60 jovens. Paramentava-se na sacristia quando o telemóvel começou a vibrar. "Quem será a esta hora?", pensou. Não atendeu. A Deus tinha pedido ajuda e tranquilidade para a missão daquele dia. Tinha-se preparado. Sabia o que ia dizer, porque não gosta de falar de improviso.

Mas a chamada não atendida inquietava-o, e D. António Marto mais ficou quando uma mensagem chegou ao voicemail. Faltavam três minutos para entrar e decidiu ver o que se passava. Não estava era preparado para o número gravado no telemóvel como chamada perdida: Nunciatura Apostólica. "A esta hora?", estranhou. Foi às mensagens: "Nunciatura apostólica." "Será que o Papa morreu?" foi o primeiro pensamento. Não resistiu e ouviu a mensagem: "Daqui núncio apostólico. Acabei de saber os nomes dos novos cardeais e o seu está lá. Já sabia? Parabéns e felicidades."

Foi desta maneira que D. António Marto ficou a saber que seria cardeal. Sem comunicação oficial, mas ao estilo do Papa Francisco. "Os outros papas telefonavam e enviavam uma comunicação escrita antes de vir a público. Este faz ele a comunicação em primeira mão, nós sabemos depois", diz a rir-se. Sozinho, nervoso, sem ter com quem partilhar a informação, decidiu calar-se. "Queria que corresse tudo bem", diz. Mais uma vez, "pedi a Deus que me desse tranquilidade e serenidade para fazer a celebração".

Até ao momento de fotografar os crismados tudo correu como se nada tivesse acontecido. Mas a notícia espalhou-se rapidamente. "Uma senhora abeirou-se do pároco da Sé e mostrou-lhe o telemóvel. Ele olhou-me : "Isto é verdade?" Disse-lhe que sim. Ele respondeu-me: "E o senhor não diz nada?" Tive de lhe dizer: "Ó homem, isto foi a cinco minutos da missa, por mensagem, tu não estavas lá, que querias que fizesse?"", conta ao DN à mesa de sua casa.

A partir dali, os telefonemas de gente amiga, de personalidades, de jornalistas não mais pararam. A agenda do bispo estava preenchidíssima. Era Pentecostes, data celebrada pelos católicos 50 dias após a Páscoa para assinalar a ressurreição de Cristo. Havia mais celebrações e mais crismas que pediam a sua presença. Tudo teve de ser alterado. O chefe de gabinete, o padre Vítor Coutinho, vice-reitor do Santuário, "arranjou uns bispos eméritos que me substituíram, para poder atender todos os telefonemas. O pior eram os jornalistas, e decidiu-se fazer uma conferência, vieram muitos, não estava à espera, e com muitas perguntas", diz a rir-se.

O convite do DN a D. António Marto foi feito logo que se soube da sua nomeação. Propusemos um almoço, num espaço onde melhor se pudesse conhecer o homem que a 29 de junho iria receber das mãos do Papa o cardinalato. O dia e a hora ficaram à sua escolha. Gostaríamos que tivesse sido antes de dia 28, mas esperámos um mês e três semanas. "Ele não tem tempo para nada até ao dia 28", disseram-nos.

A 20 de julho, antes da hora marcada, 12.30, estávamos no local escolhido por D. António, a casa onde vive desde que foi nomeado bispo de Leiria-Fátima, em 2006. Nada melhor do que o seu ambiente, a casa episcopal, numa das colinas de Leiria virada para o castelo, para se ficar a saber quem é.

À nossa espera estavam a secretária Sónia - "um primor de pessoa", diz o cardeal - e as irmãs Helena e Rosa, que "tratam de tudo na casa". Na sala, uma Última Ceia pendurada na parede e o louceiro antigo dão-lhe um toque familiar. Pão caseiro, azeitonas, água e vinho em cima da mesa indicavam que tudo estava pronto. Ao longe, o Storm dava sinal de que os donos estavam a chegar.

À hora certa, D. António entra de sorriso no rosto. "Ora cá estamos, finalmente." É tempo de apresentações e de sentar à mesa, mesmo que ainda falte meia hora para o que é habitual na casa. "Almoçamos pelas 13.00", avisa. O dia começa às 07.00, com uma oração na capela, seguida do pequeno-almoço e da jornada de trabalho, pelas 09.00. É durante a manhã "que mais gosto de trabalhar. Rende-me mais". Às vezes, a meio, há tempo para um café com todos, as irmãs e os outros colaboradores.

Ao almoço não perdoa uma refeição completa, da sopa ao café. O jantar já é mais leve, porque muitas vezes "há que continuar o trabalho, quando não tenho telefonemas e ninguém me perturba". O dia termina pelas 23.00 ou até mais tarde. Mas bastam-lhe seis horas de sono, "um pouco mais do que o Presidente da República", diz. "O sono para mim é muito importante. É o que me recupera." Por isso, nunca perdeu o hábito da siesta romana, que adquiriu nos tempos de estudante em Roma. "Encosto-me uma hora, às vezes durmo, noutras fecho apenas os olhos, mas ajuda-me a recompor."

Regressa ao trabalho pelas 15.00, "hoje vou ter várias audiências até ao final da tarde, duas delas com embaixadores, o que não percebo. Devem vir apresentar cumprimentos pelo cardinalato. Só pode ser isso...", ri-se.

"A Igreja está demasiado bispocêntrica"

Já provámos o caldo-verde, feito à moda antiga, com batata, louro, alho e uma rodela de chouriço, que nos transporta para memórias familiares. Na conversa, D. António Marto insiste não saber que missão tem o Papa Francisco para si ao nomeá-lo cardeal. "Ainda não falei com ele sobre isso." Mas uma coisa sabe: "A vida de um bispo é muito absorvente, mais do que a de um cardeal, não falo dos que estão na Cúria Romana, esses estão a trabalhar em pleno, mas dos outros. A Igreja está demasiado bispocêntrica", atira. E especifica: "Qualquer coisa tem de vir ao bispo, mesmo as mais pequenas e desnecessárias. Não é que não haja descentralização do poder nas instâncias intermédias, mas a sociedade e o povo é que não a querem. Têm de vir logo à última instância." Ora, "uma sociedade na qual não funcionem as instâncias intermédias não é saudável. A Igreja vai ter de resolver isto".

Mal acaba de o dizer, abre-se a porta da cozinha e a irmã Rosa, sorridente, sai de lá com uma travessa de bacalhau barrado com uma pasta de azeitona verde, com legumes, feijão-verde, cenoura e ovo cozido. "Que aspeto, qual é a receita?", perguntamos. "É um bacalhau normal", responde a irmã. "Sabe que as irmãs têm cursos de culinária e são exímias no que fazem", explica o cardeal, que continuava na sopa. "Não esperem, vão-se servindo... são hóspedes da casa. Eu a falar levo mais tempo", diz.

Assim que provamos, percebemos que não era um bacalhau normal, era delicioso, mas a receita terá de ficar no segredo dos deuses. O cardeal interrompe-nos para falar de uma paragem obrigatória no seu dia. "O telejornal. Tem de ser, depois do jantar", explica abrindo os braços, como se fosse óbvio. É ainda o que nos põe a par do que se passa no mundo", justifica.

Durante uma hora gosta de percorrer os vários canais. "Zapping?" "Sim, claro que faço." Por vezes assusta-se: "A agressividade na sociedade é terrível." A garfada que ia dar no bacalhau fica a meio para dizer: "Por exemplo, o recuo no acolhimento das pessoas que têm de sair das suas casas, das suas terras, forçadas pelas guerras, pela miséria, pela fome, pelos desastres ambientais e que andam à procura de uma vida digna. O problema dos refugiados tem de ser resolvido." Aponta o dedo à cultura sustentada no populismo que trabalha "o medo e a insegurança". Diz que é ela que está a levar a esta situação, mas "os europeus têm de pensar que no tempo das guerras mundiais também houve muita gente que migrou e que foi acolhida por outros povos. O próprio Trump foi acolhido".

Por isso, quando vê notícias a denunciar que crianças foram separadas dos pais na fronteira com o México só lhe ocorre que é "imoral." Os políticos da Europa têm de arranjar uma forma solidária e concertada para resolver este problema", defende, acrescentando: "Sabe, é com tristeza que assisto ao ressurgir de certos nacionalismos que estão a dividir uma Europa que era aberta e solidária. Esperemos que as novas gerações sejam capazes de dar um novo rosto à Europa."

O sorriso da irmã Rosa não a abandona. Regressa à sala para tentar encher os pratos mais uma vez, mas chega. "Não dá mais", assumimos. A conversa tem de continuar e o tempo para a refeição começa a escassear. O momento é o ideal para falar do passado, da infância, da ida aos 10 anos para o seminário, contra a vontade do pai, que o queria ver no liceu ou nos Pupilos do Exército, do tempo em que foi operário, antes de ser ordenado padre, e da sua passagem por Roma, onde viveu um dos momentos "mais duros" da sua vida, aos 20 e poucos anos, para o doutoramento.

"Nunca me deixei seduzir pelos cargos"

"Nunca me tinha passado pela cabeça chegar a cardeal. Sou um homem que vem de uma família simples, nunca me deixei seduzir por títulos, honras, altos cargos", embora reconheça que tal até possa ser sedutor para alguns na Igreja. "Somos humanos. Não vivemos numa redoma de vidro, estamos sujeitos às tentações do poder tal como as outras pessoas. Mas se queremos ser evangélicos temos de resistir." E conta: "O meu pai, que o seu sonho era ver-me nos Pupilos do Exército, disse-me um dia: 'Filho, agora és padre, tudo bem, mas que nunca te suba o poder à cabeça. Trata sempre dos humildes e dos pobres.' Achei isto espantoso e nunca o esqueci."

Nascido em Tronco, uma aldeia de Chaves, a 5 de maio de 1947, D. António Marto chega aos 71 anos com a certeza de que nunca se arrependeu do caminho que escolheu para si próprio logo na infância. Sentir que falhou numa missão, também não sente. "Mas todos temos altos e baixos. Às vezes dedicamo-nos tanto à procura de novos caminhos para a fé, tentamos animar as pessoas, comprometê-las e nem sempre temos a correspondência que gostaríamos. Isso traz algum desânimo, mas não considero um fracasso", remata

Até porque, lembra, "Jesus Cristo começou com pouca gente, eram 12, e a matéria não era da melhor. Se fosse um empresário dos dias de hoje, a maioria deles eram postos a andar. Dos 12, só um ficou junto à cruz. Ele é que veio depois repescar os outros", diz. "Digo isto aos padres mais novos que querem êxitos imediatos. Se é disso que estamos à espera, é claro que depois ficamos frustrados. Vivemos uma mudança epocal, vem aí um mundo novo..."

Já com a sobremesa à frente (morangos com uma fatia de bolo de gelado por cima) e a desesperar por um café, a ideia de um novo mundo fá-lo parar, de novo. "É um dos grandes desafios da sociedade, da Igreja. E é difícil defini-lo porque é o ruir do mundo em que nascemos e crescemos para entrarmos num mundo da cultura digital. Não é só um novo mundo assente nas tecnologias, é um mundo assente numa cultura que impõe uma nova maneira de estar, uma nova linguagem e novos tipos de relação e de comunicação."

E confessa: "Eu próprio gosto muito de navegar, de procurar bons artigos, nova informação, etc. Quando estou ao computador penso que se tivesse um quando estava a fazer a tese tinha ganho dois anos, pelo menos, na entrega do trabalho. Mas eu sou um emigrante da internet, apreendo alguma coisa desta cultura, mas as novas gerações são seus nativos." Por isso, justifica, "não podemos fechar os olhos à novidade que é este mundo novo. É o que está a fazer o Papa Francisco".

Respira fundo e ajeita o guardanapo. "Ainda nem terminei os morangos", mas que "avancem os cafés", diz. Volta ao Papa Francisco. Não foge ao tema, à reforma que não está a ser fácil e que tem tido resistência na própria Cúria. E diz que hoje, cinco anos depois deste Papa, ainda não se conseguiu atingir em pleno o que traçou para o seu pontificado: "Uma Igreja mais evangélica, próxima, misericordiosa e transparente. Uma Igreja que sai de si mesma, que vai às periferias e que não viva só voltada para os seus problemas. Às vezes tão mesquinhos quando comparados com os grandes problemas da humanidade."

"A política de hoje é a dos mais fortes sobre os mais fracos"

Esta Igreja, a que o Papa da América Latina quer, já levou ao que foi considerado uma limpeza dentro da hierarquia da Cúria, mas isso não o preocupa. "É normal. Todos os concílios que introduziram novidades trouxeram resistências e cismas." Acredita que não há receitas prontas para a mudança. "A Igreja tem de fazer experiências, tentar encontrar novos métodos, novas linguagens e uma nova maneira de estar para captar as gerações que podem levar à mudança."

O barulho da máquina do café vem da sala ao lado. Já lá vão uma hora e 20 minutos de conversa. "Aqui está ele", diz, terminando à pressa os morangos. "Não paro de falar e sou o último", ri-se, mas volta ao tema, aquele que mais tem marcado a Igreja dos últimos tempos: Há ou não uma crise de vocação? O que fazer para mudar? A resposta é pronta: "Antigamente, a Igreja era muito eurocêntrica, hoje a sua vitalidade está na América Latina, em África e na Ásia. Acabou o chamado período da cristandade, aquele em que a fé era transmitida por tradição, de pais para filhos. Isso acabou, hoje a fé é muito mais personalizada, mais convicta, experiencial, não pode ser reduzida à mera doutrina ou a um conjunto de ritos ou de regras de bom comportamento."

E quando "a fé é apreendida muito pela exterioridade, quando não lança raízes, facilmente as pessoas nos abandonam. É uma fé que fica em standby". Por isso, "a Igreja não pode baixar os braços. Tem de olhar para a juventude e perceber que ela procura uma dimensão espiritual mais profunda do que a que era transmitida antigamente. E temos de lhe dar essa espiritualidade. Não podemos eliminar ninguém, nenhum dos povos, nem a espiritualidade de que sentem necessidade para dar sentido à vida". Isto tanto vale para a Igreja como para a sociedade e para a política. "A política de hoje é a dos mais fortes sobre os mais fracos", critica, defendendo que "temos de ter novos horizontes educativos para abrir a mente e o coração aos outros e à sociedade".

Já no final, D. António Marto confessa que a preparação para ir a Roma receber o cardinalato foi fácil. "Não tinha de falar. Estava calmo quando vi os outros a subir as escadas, mas quando chegou à minha vez senti um peso. Não de medo, receio, mas de uma responsabilidade nova", desabafa.

Está habituado a ser surpreendido, foi assim quando lhe disseram que ia ser bispo em 2006 e queria continuar em Viseu, mas agora "não se pode dizer não ao Papa." Pelo contrário, quando chegou a Roma levava uma frase preparada para dizer e ver a reação dele: "Nossa Senhora e os pastorinhos agradecem o dom que quis fazer a Fátima com o cardinalato. E ele, que tem sempre uma resposta pronta, diz-me: "E tu? És o representante deles, és?" Ri-me. Mais tarde, quando fomos visitar o Papa emérito, Bento XVI, fui no bus dele, não me sentei ao lado por timidez, mas ele viu-me entrar e volta a dizer: "Não te esqueças de que o cardinalato foi uma carícia de Nossa Senhora para contigo." Eu ri-me, mas não me calei: "Acredito, eu não tenho méritos, mas a carícia chegou através do Papa Francisco. Ele riu-se."

O almoço termina com um passeio pelos jardins da casa, António Augusto dos Santos Marto escolheu esta missão aos 10 anos, mas garante que nunca se imaginou num colégio cardinalício a escolher um papa e muito menos ser ele o eleito. "Isso nem pensar", afirma. "E Jorge Bergoglio, imaginou-o?", perguntamos. A resposta também é pronta: "Temos um Papa da América Latina, agora se calhar vem um da Ásia", ri-se.

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