"Custa-me pensar que maioria absoluta tardia dê mais energia reformista"

O antigo ministro das Finanças recebe quarta-feira doutoramento <em>Honoris Causa</em> na Universidade de Évora e Cavaco Silva estará na sessão solene a discursar. A globalização é um dos temas abordados por Braga de Macedo, tal como as consequências da guerra da Ucrânia.
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O doutoramento Honoris Causa que vai receber na Universidade de Évora tem particular importância para si?
Tem. Tenho ido regularmente à Universidade de Évora, há décadas, dar aulas solenes: tenho lá amigos e alunos e depois uma ligação familiar. A família da mãe da minha mãe partiu de Évora durante as lutas liberais, bastante sentidas no Alentejo, a convenção de Évora-Monte está aí para o lembrar a quem se tiver esquecido (esse tetra avô veio de Évora para Aviz, a terra que Deus não quis como diz o povo). Embora lisboeta como meu pai, essa é uma parte muito importante da minha herança cultural. Há uma dimensão pessoal e também universitária neste doutoramento: quando se lembraram de mim, fiquei muito feliz.

Há um livro que vai ser lançado em sua homenagem e que aborda as principais áreas dos seus estudos.
Sim, um dos organizadores desse livro é antigo assistente da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, hoje a Nova SBE e juntou-se a dois outros professores, uma historiadora económica, Eugénia Mata, e outro que foi assistente e fez doutoramento comigo, Luís Brito Pereira, especialista também de economia monetária internacional. O livro está organizado em três temas considerados da minha preferência na investigação: a história económica; macroeconomia europeia, ou seja tentar olhar para a economia europeia, apesar da sua diversidade, em termos de conjunto e fiz muitos trabalhos nesse sentido, talvez os mais relevantes fossem os que identificam o papel dos ministros das Finanças dos países que estavam em processo de integração e em que haviam dois tipos, um é aquele que consegue criar credibilidade externa e o outro (que pode ser a mesma pessoa) que contribui para manter a estabilidade internamente. O terceiro tema é a política da economia internacional, e tem a ver com o sistema monetário internacional, o que me levou aos Estados Unidos. Mal me formei, dois meses depois estava nos EUA a trabalhar com o saudoso economista belga Robert Triffin (talvez uma das razões porque sou sócio correspondente da Academia Real da Bélgica onde ele foi sócio). Tentou cativar-me para ir dar aulas na Bélgica, mas acabei em Bruxelas na Comissão Europeia.

Um dos temas que tem abordado é a globalização. Esta guerra da Rússia com a Ucrânia mudará as relações no mundo?
Em Évora vou falar de "globalização e governação com saber tropical". Porque é olhar para a globalização e governação não tanto da área do Atlântico Norte, que é uma comunidade de segurança, o que muitos trabalhos, especialmente de Richard Cooper outro saudoso professor meu de Yale, têm salientado como sendo importante para que a democracia e a globalização levem à convergência, tornando a OCDE uma espécie de máquina de convergência. A NATO, os países nessa comunidade de segurança, que inclui o Japão noutro continente. Ou seja quando há comunidade de segurança, a globalização e a democracia formam um círculo virtuoso, os países mais atrasados convergem. Se juntarmos os países todos, independentemente de estarem numa comunidade de segurança, o efeito convergência enfraquece muito - até desaparecer. Dito de outro modo, a globalização não acabou com a crise de 2008, nem com a pandemia e nem agora com a guerra - mas tornou-se cada vez mais insegura ameaçando a convergência económica.

Uma globalização insegura?
Essa insegurança lembra muito a primeira globalização, decorrente das viagens dos marinheiros portugueses à descoberta do caminho marítimo para a Índia pelo Atlântico Sul e depois a circum-navegação. A ironia, quando se tem uma perpectiva histórica mais longa, é que há uma globalização muito insegura quer no início e quer no período mais recente. A hiperglobalização que ocorreu após a queda do Muro de Berlim é a exceção, sem esquecer a globalização decorrente da revolução industrial e depois interrompida pelas duas guerras mundiais, que só retomou a seguir a 1945, no período áureo em que foram fundadas as instituições de Bretton Woods, a ONU e a própria NATO. Uma coisa que me espantou foi os países de língua portuguesa que aceitaram condenar a invasão da Ucrânia na Assembleia Geral da ONU incluir Portugal (com o resto da EU), o Brasil, Timor-Leste, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe ao passo que Angola e Moçambique se abstiveram e Guiné-Bissau não votou. Veja-se como as fidelidades do período da grande rivalidade dos dois blocos, em que a União Soviética tinha um peso muito grande, ainda marcam os votos onusianos. Mais, na organização das grandes economias emergentes - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul -, só o o Brasil condenou a invasão! Não tendo havido qualquer política de segurança na CPLP, as posições acabaram por reproduzir o mundo bipolar duma Guerra Fria, que pelos vistos ainda não acabou.

A guerra mudou a dinâmica da União Europeia?
Que deveria mudar penso que não há grandes dúvidas. Na Comissão Europeia comecei por trabalhar sobre economia europeia, mas depois fartei-mente de ir ao Leste, incluindo União Soviética, porque Jacques Delors convenceu-se que um português que presenciou uma revolução tão boa como a do 25 de abril podia mostrar aos países de Leste a diversidade da Comunidade Europeia. Fiz os possíveis e mesmo mais tarde, com o BERD, andei por lá, incluindo a Ucrânia já independente. A verdade é que quando caiu o muro de Berlim, a CEE estava com um dinamismo extraordinário, que culminou com o tratado de Maastricht, foi talvez o momento em que a credibilidade do nosso país mais se ilustrou porque entramos para o sistema monetário europeu, sem qualquer mácula apesar das cautelas britânicas. Mas a União Europeia (por culpa dos Estados membros, da Comissão ou do mundo inteiro), tornou-se tão complexa que é difícil responder a essa pergunta. Uma coisa é o desejo outra é a frieza de análise em que se vê que de facto é tudo muito lento.

O impacto financeiro-económico que toda esta crise terá na Europa e em Portugal será gigantesco?
Sim, porque agrava as circunstâncias nas quais se incluem projetos mundiais para questões como as alterações climáticas. É catastrófico a todos os níveis. Por isso é possível que haja agora uma reação negativa contra a UE, mas duvido porque a diversidade sempre existiu, desde logo com Portugal, Espanha e Grécia, esta já membro, mas que parece menor do que actual. A maneira como a UE está a funcionar não será mais parecido com Bizâncio, aquele império muito complicado substituído no tempo das Descobertas pelos Otomanos? Ao mesmo tempo, esta maior ligação da Europa com a NATO é notável: ninguém suspeitaria que Finlândia e Suécia queiram aderir à NATO, como logo fizeram os Bálticos. Não quero ser pessimista, mas a Europa ultimamente tem ficado aquém das expectativas que eu tinha, emparticular o grande rombo que foi a saída do Reino Unido, nosso velho aliado.

Mas as posições do Reino Unido sobre a guerra não o estão a reaproximar novamente da UE?
Tenho a certeza que sim, mas aí é aproximar a NATO da Europa. Sempre houve a questão da anglo-esfera, que até fez os franceses amuarem um pouco. Neste momento a UE e a NATO estão muito ligadas, se isto permite que a UE tenha alguma força militar, embora o Reino Unido seja o jogador essencial, é muito bom. Mas também é a questão da durabilidade: estamos numa emergência, há um incêndio. Há um país que foi atacado e há um receio que os países próximos também o sejam. É difícil ser otimista quanto à capacidade que a Europa tem. No caso dos Estados Unidos não há dúvida que estão bastante empenhados.

E sobre a questão económica, numa Europa e no mundo que estava agora a tentar recuperar dos danos de uma pandemia, o que acontecerá?
A ideia da insegurança que havia antes era de natureza pessoal, de saúde e económica, muito marginalmente política. Esta crise é uma insegurança mesmo global, a guerra, e isso já remete para o período do pós-guerra, para o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que está agora muito pior. A economia mundial demorará a recuperar.

E a crise energética era inevitável devido à dependência do petróleo e do gás natural da Rússia?
A dependência do petróleo é um problema enorme, lembra o tipo de problemas que existiam nos Estados Unidos no final dos anos 70. A inflação e o preço da energia criaram a "estagflação". São problemas que afinal não foram resolvidos! A questão da dependência petrolífera existe quase há cem anos tal como estes problemas de inflação, estagnação e energia insegura. É um facto que a tecnologia não permitiu uma melhoria e diversificação de fontes energéticas.

Portugal é uma economia mais frágil e mais exposta, com o PRR será possível responder a toda esta crise somada à da pandemia?
Não, crise toda não, seria absurdo pensar que a resposta só viesse de fundos externos. A experiência que Portugal tem sobre o aproveitamento de fundos estruturais, já desde há bastante tempo, não sendo tão dramática como noutros países, é preocupante. O que já se colocava de dúvidas sobre boa governação do processo que será agora com desafios incomparavelmente maiores? Ninguém vai acusar o governo de ter causado isto, mas de facto não se preparou, porque muitas das medidas que tomou desde 2015 implicaram uma economia mais dependente de um Estado tentacular que deve resolver tudo. Se isso era mau naquela altura, o que será agora com todos estes choques adversos? PRR... tomáramos nós!

Mas um governo de maioria absoluta, no caso do PS, dá maior garantia de se conseguir responder politicamente a esses desafios?
Pertenci a um governo de maioria absoluta e, ao contrário do que se dizia permanentemente na altura, penso ser uma maneira de responsabilizar porque não há a desculpa de falhar por não conseguir maioria. Oxalá esta venha a funcionar, mas sabe Deus as dificuldades que houve quando as maiorias absolutas ocorreram no início do ciclo político! Neste momento custa-me pensar que por si a maioria absoluta tardia dê energia reformista ao governo porque, sinceramente, penso que o tipo de reformas que vimos são no sentido sempre de "dar mais" e não de zelar pelo aumento da produtividade, pela eficiência e pela bom governo. Agora o que marca é a ideia dos rendimentos aumentarem porque as reformas são sempre difíceis e têm de ser bem organizadas, desde logo espero que aconteçam. Até porque o eleitorado percebe que havendo uma maioria absoluta é mais difícil desaproveitar o momento político. A responsabilidade está lá, isso é bom.

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