Cultura – O fim da agonia?

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Criado a seguir à vitória do PS nas eleições de 1995, o Ministério da Cultura foi oficializado com a publicação da sua "lei orgânica" a 7 de maio de 1996, faz agora 25 anos. É, pois, uma boa altura para fazer um balanço da sua acção neste quarto de século, bem como para avaliar as perspectivas que se lhe abrem hoje, num contexto tão diferente daquele em que foi criado.

Antes disso, é de salientar que a criação deste ministério não obedeceu a um impulso eleitoralista, tratou-se de uma decisão ponderada sobre o papel da cultura no quadro da acção governativa que se julgava um imperativo desenvolver em ruptura com o chamado "período cavaquista", para o que muito contribuíram os "Estados Gerais" promovidos por A. Guterres no período 1994-95, um caso até hoje único de preparação de um projecto eleitoral estratégico para o país.

Esse papel da cultura deveria ser um papel estruturante no quadro da nova acção governativa, tendo sido este o sentido da decisão logo tomada de suspender a construção da barragem do Côa em nome da protecção do património (gesto que ainda hoje ecoa como exemplo nesta instituição mundial), no caso as gravuras rupestres do Paleolítico Superior do vale do Côa, únicas no mundo e classificadas como Património Mundial pela UNESCO desde 1998.

A partir daí seguiram-se cinco anos sobre os quais, naturalmente, não serei eu a pronunciar-me, a não ser para lembrar brevemente que a acção governativa na área da cultura se organizou em cinco eixos: criação, património, livro e leitura, descentralização e internacionalização. E que todos foram dotados das instituições e dos quadros mais capazes e motivados. Para lá das naturais críticas e elogios suscitados, é consensual reconhecer-se que se conseguiu colocar a cultura "no coração da política" em três dimensões nucleares para a afirmação do novo ministério: na visão estratégica de que era portador, no protagonismo político alcançado e nos meios financeiros obtidos.

Foi a impossibilidade de prosseguir o trabalho até então realizado que levou ao termo desse período, de 1995 a 2000. Os 20 anos que se seguiram são fáceis de caracterizar: ao desinteresse pelo sector logo a seguir demonstrado por António Guterres no curto período em que ainda governou viria a seguir-se uma longa agonia, marcada pelo estrangulamento financeiro do Ministério da Cultura, pelo seu estropiamento institucional e pela razia dos seus quadros mais qualificados.

Iniciada por Durão Barroso, esta linha seria depois seguida com afinco por José Sócrates, que rebaixou a cultura a um ponto que foi depois fácil a Passos Coelho apagá-la do mapa governamental. Sócrates, que nem uma só vez levou a cultura a debate no parlamento, conseguiu esmagar o orçamento da Cultura até aos 0,1% do Orçamento do Estado (o que nem no cavaquismo acontecera), deixando o sector no ponto mais extremo da agonia iniciada por Barroso, situação que Passos Coelho manteria.

Foram pois naturais as esperanças de que um novo regresso do PS ao poder, em 2015, suscitaram, esperanças essas que António Costa prometeu por diversas vezes não defraudar, não só repondo institucionalmente o Ministério da Cultura, mas também dotando-o dos meios financeiros e dos recursos humanos da "tradição socialista" do fim dos anos 1990.

E a verdade é que começou por cumprir, repondo a Cultura na orgânica do seu governo. Se, face ao cavaquismo, António Guterres tinha tido a inteligência de inventar uns "Estados Gerais" inéditos no âmbito dos quais aparecia a ideia de criação do Ministério da Cultura, António Costa, talvez bloqueado pela sua proximidade política com José Sócrates e com a sua política de destruição cultural, limitou-se a ziguezaguear por diversas iniciativas sobretudo remendonas, numa área que exigia visão, estratégia e determinação.

O Ministério da Cultura viveu assim estes anos de costismo sob o mesmo garrote financeiro (em 2020 o orçamento do ministério era 10 milhões de euros mais baixo do que o de 2000, isto é, 20 anos antes), a mesma desorientação estratégica e a mesma marginalização institucional dos anos anteriores, alimentando-se uma permanente confusão entre o que são políticas públicas de cultura com meros reenquadramentos regulamentares e algumas reformulações burocrático-administrativas. E a covid-19 só veio reforçar este retrato, ao revelar a incapacidade de se considerar, no quadro das medidas tomadas, os livros como "bens essenciais" e as actividades culturais como um sector em risco de sobrevivência.

Assim chegámos a 2021. Com o Estatuto do Trabalhador da Cultura a exigir ainda muito trabalho, chegou também o Plano de Recuperação e Resiliência de onde, mais uma vez, a Cultura tinha desaparecido. Foi preciso um forte coro de protestos para a situação ser alterada, anunciando-se agora uma catadupa de 243 milhões de euros para a Cultura. O que, a confirmar-se, será excelente, dissipando-se as crónicas desculpas do seu subfinanciamento.

Oxalá se confirmem. Oxalá haja ideias e projectos, liderança e massa crítica para os gerir. Que, por exemplo, quando se pensar na recuperação patrimonial (anunciam-se 150 milhões para 49 intervenções), se pense logo na sua manutenção, para que tudo não esteja na mesma pouco tempo depois. Oxalá se perceba também que a covid-19 trouxe consigo múltiplas consequências "sem retorno" possível, pelo que vai ser preciso conhecimento e flexibilidade, ousadia e determinação para rasgar novos horizontes para a generalidade das actividades culturais.

Oxalá se perceba a tempo que estes horizontes implicam uma nova relação com a escola, do pré-primário até à universidade, com destaque para esta em tudo o que tem que ver com a tão falada como tão pouco elucidada transição tecnológica - um mero instrumento sem conteúdo, é bom não esquecer isto - que talhará modalidades inéditas de criação no interior da própria cultura. Oxalá se perceba que o que está em causa é a articulação da cultura, não com o entretenimento, mas com a arte, num movimento de criação de que se começam já a vislumbrar os primeiros sinais.

Oxalá seja o fim da longa agonia que tem atingido a cultura.

Professor universitário. Antigo ministro da Cultura (1995-2000).
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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