Culpa

<p>Sinal de alerta ou macaquinhos no sótão? Se estivermos para aí virados, todos os dias encontramos pequenas fontes de culpas e remorsos. Quando na sua origem estão actos (ou omissões) irrelevantes, ou pelos quais não somos sequer responsáveis, o mais adequado é eliminar, por si, esses pensamentos recriminatórios sem sentido (em casos mais sérios esta libertação pode exigir ajuda de um terapeuta). Outras vezes, porém, a única forma justa e eficaz de redenção passa por seguir essas emoções como um aviso importante, corrigir os comportamentos que lhes deram origem e restaurar a relação que eles danificaram. Requer coragem e vontade, mas tem uma valente recompensa: o resgate da serenidade perdida.</p> <p> </p>
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No seu filme Gran Torino (2008), Clint Eastwood é Walt Kowalski, um veterano da Guerra da Coreia que após a morte da mulher fica a viver só com o cão na sua casa de subúrbio em Detroit. Em frases curtas, recheadas de palavrões e acompanhadas de cuspidelas para o chão, deixa bem claro a todos (aos filhos, noras e netos, ao jovem padre e sobretudo aos asiáticos que lhe vêm invadindo o bairro) que deles só quer uma coisa: que o deixem em paz. No decurso do filme, porém, vamos percebendo que a raiva que ele trouxe da Coreia, e que despeja agora nos vizinhos hmong, se faz de experiências traumáticas da guerra, e a que mais o atormenta é a de ter matado um rapaz desconhecido. A sua cólera é assim, em grande parte, feita de culpa, daquela que costuma não ter remédio. O resto do filme conta como ele acha afinal uma saída em grande, usando a vida que lhe resta para salvar alguém e, quem sabe, talvez a própria alma.
Podia este filme ser um tratado sobre culpa, a individual e a colectiva (Walt Kowalski é também a figuração de uma certa América), as consequências amargas de a guardarmos em lugar sombrio, o papel do remorso (também da parte de Thao, o rapaz hmong que lhe tentou roubar o carro Gran Torino como rito de admissão num gang) e, finalmente, a ilustração de como é sempre possível converter tudo isso em alguma coisa com conteúdo reparador. Do outro lado, resta apenas o niilismo, um universo inóspito, a total ausência de valores morais, a falta de sentido.

Não morreu solteira...
A expressão popular até pode traduzir o resultado de muitos episódios reais, para os quais nunca se encontrou um responsável (acontece muito com crimes políticos e económicos). Num sentido mais criativo, porém, não se pode dizer que à culpa tenham faltado relações apaixonadas. Múltiplos relatos e reflexões, correntes de análise e de psicanálise, histórias verídicas e inventadas, poemas, músicas, pinturas. Como tema de conversa, talvez seja apenas ultrapassada pelo amor, e ainda assim andam os dois muitas vezes embrulhados.
Biografias e obras de grandes escritores remetem para essa espécie de culpa irreparável adquirida por via da sua formação católica tradicional, depois expressa na natureza dos tormentos que compõem as suas narrativas (como as do russo Fédor Dostoievski (1821-1881), entre outros), bem como nas suas vidas e personalidades. O irlandês James Joyce (1882-1941), por exemplo, que em criança até gostava de ir à missa com a mãe, colheria depois, nos tempos do colégio jesuíta, a memória tenebrosa dos castigos destinados a culpabilizar e reprimir a masturbação na adolescência.
Também a cultura pop mais recente inclui nos seus temas uma noção de culpa excessiva e sem fundamento, por actos que não são nossos ou que, sendo-o, não deviam sequer ser censurados. «Don't know what I've done but I feel ashamed», canta Beck em Modern Guilt. E já tínhamos ouvido um lamento idêntico na voz poderosa de Marianne Faithful: «I feel guilt, I feel guilt/Though I ain't done nothing wrong I feel guilt.»
Por outro lado, e nos antípodas destas queixas de opressão, temos declarações ideológicas que arrumam as ideias quanto a uma obrigação moral básica e universal (ou seja, desvinculada de qualquer religião). «Acredito com paixão que somos, aqui e agora, responsáveis por nós próprios e pelos nossos actos. Não há saída para isso.» As palavras são de Martha Gellhorn (1908-1998), jornalista e escritora norte-americana, uma das mulheres que casou com Hemingway. E foi com fervor que denunciou o mal que Freud nos fez, por nos levar a acreditar que podemos sempre pôr as culpas noutra pessoa qualquer.

Verdades e consequências
Afinal em que ficamos? Será a culpa um instrumento útil e produtivo ou, antes, uma emoção sombria e estéril? E, antes de mais, de que falamos exactamente? De um desconforto incurável por termos saúde e um emprego, sabendo que, no outro extremo de uma escala de oportunidades, há pessoas que, sem terem feito nada para isso, nasceram na Faixa de Gaza ou no Sudão? Falamos de um constante peso na consciência por não sermos pais, filhos, irmãos, amigos ou amantes ideais, com toda a disponibilidade e dedicação que os outros merecem? E por termos aceite, a dada altura, que a morte nos levasse entes queridos e nós conseguíssemos, depois disso, voltar a comer, beber e ir de férias? Ou falamos antes de episódios concretos, em que nos comportámos realmente de forma reprovável, que resultou na lesão mais ou menos grave de terceiros e cujos efeitos podemos, de uma maneira ou de outra, tentar remediar?
Segundo especialistas de diversas áreas [ver caixas], a aritmética é simples e directa: a culpa é útil quando motiva uma desejável correcção de trajectória ou quando nos leva a comportamentos que terão um efeito correctivo mesmo de situações que não fomos nós a criar (como o efeito da solidariedade para minimizar desigualdades sociais). E o facto é que algumas destas correcções dão tanto trabalho e exigem tanta coragem que se tornam talvez mais prováveis quando movidas pela grandeza da alma associada a uma certa forma (não patológica) de culpa. Quem não se sente diminuído por reconhecer os seus erros adopta mais facilmente gestos que entende como necessários a uma reparação.

As nossas escolhas
«Na ausência de Deus, esse homem tem de assumir a responsabilidade.» Cliff Stern (Woody Allen) questiona a história que acaba de ouvir, sobre um oftalmologista bem na vida que mandou matar a amante e, após um período de intenso remorso em que quase se entregou à polícia («A culpa é minha, é irrevogável, vou ter de pagar!», dissera ele a um amigo), acorda um dia com o sol a brilhar e a família em seu redor. «Safou-se de tudo e a vida voltou ao normal», termina Judah Rosenthal (Martin Landau), esse protagonista do filme Crimes e Escapadelas (1989). Este desfecho, diz o próprio «culpado», apenas acontece na vida real. Quem quiser um final feliz (em que o criminoso é punido) tem, segundo ele, de ir para Hollywood. Aí sim, tal como na Bíblia ou em Shakespeare, o crime é sempre descoberto.
O filme contém ainda uma reflexão sobre as escolhas que fazemos, e como são elas que realmente nos definem. E, apesar de todo o desamparo próprio de um mundo em que o crime, afinal, parece que compensa, termina numa nota de esperança: talvez as gerações futuras percebam melhor.
Em todo o caso, já disse Raskolnikov, protagonista de Crime e Castigo, de Dostoievski: «O sofrimento evidencia sempre uma consciência ampla e um coração nobre. Na minha opinião, os homens verdadeiramente grandes devem sentir-se muito desolados na Terra…»


«A CULPA É UM ALERTA»

Padre José Manuel Pereira de Almeida, pároco de Santa Isabel, Lisboa, também médico no IPO e docente na Faculdade de Teologia da Universidade Católica

Qual é o papel instrumental da culpa no seio da Igreja Católica?
A reflexão acerca da culpa, ou da culpabilidade, nunca é uma reflexão sobre os fins. A culpa como fim seria um fim terrível, sempre deslocado. Uma «religião da culpa» não seria sequer capaz de religar alguma coisa com sentido. A culpa surge no nosso relacionamento com os outros e com Deus porque há alguma coisa que devíamos ter feito e não fizemos, ou alguma coisa que devíamos ter feito bem e fizemos mal; ou até por termos deixado correr as coisas como elas vão. Assim, a culpa é um alerta, no sentido de que o mal não está só fora de nós, também nos atravessa. E este alerta permite-nos mudar, abrirmo-nos à conversão. Esta palavra quer dizer «voltar-se para»; em hebraico, a palavra correspondente continua a ser utilizada nas danças populares, para o momento em que os pares se voltam um para o outro.
Mas como é possível essa conversão se estamos marcados pelo pecado original?
Na perspectiva cristã, Jesus assumiu em si a culpa de toda a humanidade. Por isso temos, à partida, uma reconciliação definitiva, e, para utilizar as palavras de S. Paulo, nada pode separar-nos do amor de Deus. Não podemos esquecer que antes do pecado original há uma Graça original. As culpas que experimentamos agora estão relacionadas com o nosso agir; o que indica um caminho a percorrer.
E em termos individuais, qual é o papel da culpa?
Antes de mais é necessário distinguir culpa moral de culpa psicológica. O desejável é que a nossa consciência moral possa servir-se da estrutura pré-pessoal a que chamamos super-eu e não seja o super-eu a esmagar-nos, inculcando uma culpa patológica que impede qualquer possibilidade de vida.
Em termos éticos, existe uma unidade fundamental de três elementos: conhecimento, liberdade e responsabilidade. Se uma pessoa não sabe, ou não é verdadeiramente livre, não pode assumir uma plena responsabilidade.
Mas, para um não católico, as imagens que mais passam do fenómeno religioso não são as da libertação ou da comunhão com Deus, e sim as do pecado e do sofrimento…
… do «vale lágrimas»… Há muita coisa sombria quando se fala de religião. Pensa-se logo na Semana Santa, em que tudo é roxo. Pode chegar a pensar-se num deus que, para se pôr de bem com todos, tem de fazer sofrer o próprio filho, até morrer na cruz. Neste deus eu não acredito. Jesus de Nazaré fala de amor e não desiste de viver o amor até ao fim; não cede às pressões do poder. Mesmo que o fim pareça um fracasso: é nesse fracasso que encontra a plenitude. Não estou aqui a fazer a propaganda de uma religião do insucesso, mas é uma escolha que Jesus faz: ir até ao fim. Acontece assim com os profetas…
E quando se fala na ira de Deus…
Um dia, na sinagoga em Nazaré, na sua terra, Jesus levanta-se para fazer a leitura; dão-lhe o livro do profeta Isaías e Jesus omite a última parte do último versículo. Diz apenas «o ano da graça do Senhor», e corta a expressão «o dia da ira do nosso Deus.» E relata o evangelista: «Estavam colocados em Jesus os olhos de toda a sinagoga.» Só graça, nenhuma referência à ira. Em contraste com João Baptista, que prepara o povo para o «dia do Senhor», para que quando ele chegasse os justos pudessem entrar no Reino, Jesus diz: o Reino já veio, está no meio de vós. Está dentro de vós. Ou seja, foi-vos dado, de graça. Podemos viver a partir do dinamismo que o dom da graça confere: é a partir desse perdão original de Deus, sem condições, que podemos também perdoar. Incondicionalmente. O perdão restabelece a minha relação com o outro, sem defesas. Mas se pedir perdão é, às vezes, muito difícil, perdoar pode ser ainda mais difícil. Por isso, querer perdoar é já perdoar.
E quanto à penitência? Funciona como uma pena?
Tal como no sentido jurídico, ela é também instrumental: serve para restabelecer a relação com os outros. Não sei se as penas do nosso sistema penal funcionam realmente como reinserção. Mas é importante notar que a aplicação de uma pena não significa o mesmo que vingança. A pena deve ser um lugar de reflexão, de conversão, de mudança.

«NÃO HÁ PUNIÇÃO SEM CULPA»
Paula Pratas Jorge, advogada

Em direito, como se define o conceito de culpa?
Designadamente (mas não exclusivamente) no campo do direito criminal, o princípio da culpa é fundamental. Não há punição sem culpa, sendo neste sentido uma condição essencial de punibilidade. Mas a culpa é também um dos factores determinantes do tipo e medida da punição (pena) a aplicar, podendo surgir sob duas formas gerais – comportamento doloso ou negligente –, sendo que dentro destas categorias existem ainda outras subdivisões que permitem uma maior graduação da culpa: o dolo pode ser directo (o mais grave), necessário ou eventual e a negligência pode ser consciente ou inconsciente. Esta abordagem pode fazer que os conceitos de culpa em termos jurídicos e do ponto de vista moral não coincidam, nomeadamente quando estamos no campo da culpa sob a forma negligente inconsciente (em que o agente não prevê a realização do um acto ilícito e danoso), o que para muitos pode sugerir ausência de culpa, mas ainda assim o agente pode ser censurado – neste caso, a censura radica na falta de cuidado em prever, como podia, tal facto. Por outro lado, a culpa, sendo um elemento essencial de punibilidade, não é suficiente, podendo haver comportamentos comprovadamente culposos que ainda assim não são punidos. E isto porque ao princípio da culpa se podem sobrepor outros valores igualmente fundamentais. Por exemplo, o princípio da segurança jurídica, que obriga a que a justiça seja feita dentro de determinados limites temporais, sob pena de haver prescrição do procedimento criminal. O princípio da não valoração de provas obtidas sob tortura. Ou o princípio da proibição de uma pessoa ser julgada duas vezes pelo mesmo crime.
E que papel sobra para o arrependimento?
Em direito criminal, por exemplo, a confissão dos factos em julgamento e as mostras de arrependimento e de reparação dos danos causados dão lugar a uma atenuação especial da pena. Mas não obstante o direito criminal ser o campo de aplicação por excelência do princípio da culpa, a verdade é que ele é fundamental em muitos outros ramos do direito. No direito civil a culpa é um dos pressupostos essenciais da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual). Ou seja, não há direito de indemnização se não existir um comportamento culposo do réu. No campo do direito laboral, o conceito da culpa é também essencial, nomeadamente no despedimento com justa causa, que está dependente de um comportamento culposo do trabalhador.
Mas em direito da família, por exemplo, temos agora o «divórcio sem culpa», não é?
Até há muito pouco tempo o divórcio litigioso, excluindo as situações de separação de facto, ou de ausência e alteração das faculdades mentais, assentava no princípio da culpa – só podia ser intentado pelo cônjuge que não violava os deveres conjugais, sendo que no processo se devia apurar quem foi o cônjuge culpado do divórcio (podendo concluir-se naturalmente que a culpa era repartida por ambos os cônjuges, mas ainda assim devia apurar-se qual era o principal culpado). As recentes alterações na lei do divórcio eliminaram a violação culposa dos deveres conjugais como fundamento. Curiosamente (ou não, tendo em conta a importância do conceito de culpa), este foi um dos aspectos controversos do novo regime. Para muitos, esta nova lei premeia o prevaricador – o cônjuge que viola as suas obrigações conjugais pode por si só, e sem o consentimento do outro, promover o divórcio.


«PODE SER DISFUNCIONALMENTE PROTECTORA»

José Serra, psicólogo clínico, membro da Sociedade Portuguesa de Psicoterapias Construtivistas

A culpa é uma emoção construtiva?
Antes de mais, a culpa protege a vida em sociedade e é sinal de alarme para o indivíduo, podendo assim funcionar como porta giratória da sua reintegração social. Neste primeiro contexto, toda e qualquer expressão de culpa e remorso é positiva se abrir caminho à responsabilização, ao arrependimento, ao pedido de perdão e à reparação do mal feito. O espectro desta primeira acepção é amplo e vai desde a mais completa ausência de culpa e remorso (por exemplo, na perturbação anti-social da personalidade, nos casos de pedofilia, nos casos de corrupção e/ou negligência lesivas do Estado…) – veja-se o caso de Josef Fritzl, que passou da total ausência de remorso, para a assunção cabal de culpa quando ouviu a filha a relatar as atrocidades de que se sentira vítima – até à sensibilidade culposa excessiva para com eventuais infracções cujo impacte social é escasso (escrúpulos religiosos, perturbações obsessivo-compulsivas…).
Existem casos em que se torna patológica?
Uma segunda acepção, com evidente relevância psicoterapêutica, é quando a culpa se apresenta como emoção secundária, como emoção que «tapa» outras emoções, necessidades e desejos mais profundos, mais saudáveis e criativos, mas que estão inacessíveis à consciência do sujeito. Nestes casos, a culpa desempenha uma função disfuncionalmente protectora, ainda que compreensível, em que a pessoa experimenta – amiúde no âmbito do não-conscientizado e do não-dito –, que é mais importante, mais coerente e menos ameaçador sentir culpa do que aceder às suas emoções primárias saudáveis. Por exemplo, e simplificando, a mulher vítima de maus-tratos cujo sentimento de culpa («Sou eu que não sou boa mulher») é mais forte do que – e, portanto, bloqueia – uma posição assertiva caracterizada por uma raiva adaptativamente saudável («Não mereço ser tratada desta maneira, vou apresentar queixa à polícia e pôr um ponto final nisto!»), porque é menos ameaçador sentir esta culpa do que, eventualmente, deixar de ser dependente ou lutar por maior autonomia. Ou, ainda – simplificando, de novo –, o sentimento de culpa de um jovem por ter sobrevivido a um acidente em que o irmão mais velho morreu: a culpa, neste caso, pode desempenhar a função de evitar a perda trágica, permitindo, ainda que disfuncionalmente, a ligação com o falecido, pois é menos ameaçador sentir culpa que prosseguir com a própria vida e buscar a felicidade.
O que fazer, tanto num caso como no outro?
Do ponto de vista terapêutico, é necessário identificar e acolher os sentimentos de culpa resultantes das situações interpessoais que o geraram, fazer um trabalho de exploração, aprofundamento e destrinça das suas características disfuncionais, e transformá-los recorrendo a emoções fundamentais saudáveis (capazes de orientar escolhas, decisões e cursos de acção criativos e portadores de satisfação existencial), que favoreçam uma adaptação integrada, satisfatória e plena à realidade e da qual a pessoa é protagonista responsável. Caminho nem sempre fácil, mas sem dúvida mais profícuo do que a sugestão: «Não tens motivos para te sentires culpado/a; porque não te libertas disso?»

«CULPA E VERGONHA, DIFERENTES IMPLICAÇÕES»

João Moreira, professor de Psicologia e investigador na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Como distinguir entre culpa e vergonha?
Embora a generalidade das pessoas se julgue capaz de o fazer, quando se lhes pergunta se numa dada situação em que cometeram alguma transgressão sentiram vergonha ou culpa respondem «as duas» ou «nenhuma». Esta dificuldade só foi ultrapassada recentemente, pelos trabalhos de duas psicólogas norte-americanas, Helen Block Lewis e June Price Tangney. Segundo Lewis, reagir com vergonha ou com culpa depende de o foco da nossa atenção estar em nós («sou mesmo horrível») ou no comportamento tido («que coisa horrível que eu fiz»).
As investigações de Tangney mostram que parece ser a vergonha, e não a culpa, a estar associada a sentimentos negativos e a comportamentos ainda mais incorrectos e indesejáveis. A pessoa que reage com vergonha sente desprezo por si própria, sente-se inferior aos outros («sentir-se pequenino»), tem vontade de desaparecer («se tivesse um buraco onde me meter...»), tenta ocultar aquilo que vê como as suas fraquezas ou defeitos pessoais (tem uma baixa auto-estima), isola-se ou pode mesmo reagir com agressividade se essa tentativa de fuga e ocultação não for bem sucedida, se for confrontada com o que fez. A culpa, pelo contrário, dá origem a reacções mais adequadas. Embora não deixe de ser um estado desagradável, a pessoa em si não se sente posta em causa. Não precisa de se esconder, tende antes a preocupar-se com o comportamento que teve e os seus efeitos, sobretudo para os outros. A culpa está assim, ao contrário do que geralmente se pensa, associada a resultados positivos em termos psicológicos, como a empatia para com as vítimas e genuínos pedidos de desculpas, tentativas de compensação e reparação dos danos causados, e a sinceras tentativas de alteração do comportamento futuro. As pessoas com sentimentos de culpa não sofrem de depressão nem de baixa auto-estima, pelo contrário.
Existem pessoas ou culturas mais orientadas para a culpa, e outras para a vergonha?
Sim. A propósito, uma história interessante foi-me contada há anos pelo psicólogo norte-americano Robert J. Sternberg. Numa conferência num país latino-americano a audiência não parava de conversar. Por várias vezes ele interrompeu o seu discurso para pedir silêncio, mas não obteve qualquer efeito. Subitamente, alguém na audiência se põe de pé e grita algumas frases em espanhol, demasiado rápidas para que o seu fraco domínio dessa língua lhe permitisse decifrá-las. Caiu sobre a sala um profundo silêncio, que se manteve até ao fim da sua intervenção. No final, intrigado, abordou aquela pessoa para saber do teor das suas palavras. Ela respondeu algo como: «Estava a cometer um erro básico, pois tentou apelar aos sentimentos de culpa da audiência, e a nossa cultura, ao contrário da norte-americana, não é baseada na culpa, mas na vergonha. O que eu disse foi: “Se vocês continuam a falar assim ele vai dizer lá na América que somos uns selvagens que nem se sabem comportar numa conferência de um visitante ilustre.”» As minhas investigações recentes apontam para que esta diferença entre culturas e entre pessoas se deve ao grau de internalização dos valores e regras. Nas culturas (e pessoas) orientadas para a culpa, a pessoa assume os valores e regras como genuinamente seus, como algo que tem que ver com aquilo que é e quer ser. Já as pessoas (e culturas) com tendência para a vergonha têm essas regras e valores muito dependentes do exterior. Embora não deixem de os admitir como seus, fazem-no mais por uma sensação de dever, por uma preocupação com a sua imagem social, e não tanto por convicção profunda. O conceito de «não inscrição», proposto pelo Prof. José Gil na sua análise da cultura portuguesa em Portugal Hoje: o medo de existir, relaciona-se justamente com esta atitude.

«A CULPA É UM INSTRUMENTO»

Luís Batalha, antropólogo social, ISCSP, Universidade Técnica de Lisboa

Qual é o papel social da culpa?
A culpa tem um papel importantíssimo na estruturação das relações sociais. Em sociedades de grande dimensão (industriais, urbanas, pós-industriais, etc.) é uma peça fundamental de um sistema amplo de valores morais que tem frequentemente por detrás uma visão do mundo de natureza religiosa (catolicismo, protestantismo, judaísmo, hinduísmo, etc.).
Qual a diferença entre culpa individual e colectiva?
Na Idade Média, por exemplo, era aceitável punir uma pessoa pelo crime de outra desde que fosse família. Na sociedade moderna isso não é moralmente aceitável, embora haja formas de culpa e responsabilidade colectivas. E a culpa individual pode ter uma origem colectiva, uma pessoa pode sentir-se culpada por algo que é imputado ao seu «povo», como um alemão que se sente culpado de genocídio só porque viveu durante o período do nazismo, mesmo que não tenha tido qualquer participação individual na perseguição e morte de judeus e outras minorias.
No nosso mundo dito ocidental há grupos sociais particularmente afectados pela culpa?
Por exemplo as mulheres, em sociedades católicas onde o génesis foi durante gerações a principal «teoria» da origem humana, carregaram consigo o estigma da «culpa do pecado original» que supostamente fez cair a humanidade em desgraça para depois ser salva (Eva foi mais culpada do que Adão). Essa culpa serviu para as subalternizar e predispor para um conjunto de sacrifícios (redentores) que serviam sobretudo interesses masculinos. As religiões (católica e protestante incluídas) são particularmente eficazes no desenvolvimento de formas de subalternização e dominação assentes na «culpa» e no «pecado». Mas não só as religiões têm esse papel. Por exemplo a masturbação ou a homossexualidade foram durante décadas consideradas pela ciência médica como comportamentos «doentios». Isso incutia nas pessoas sentimentos de «anormalidade» associados à culpa e à vergonha. Religião (e igreja) e ciência estiveram muitas vezes juntas no desenvolvimento de estruturas de repressão social assentes em determinadas ideias de «natureza», «natural», «normal», etc.
Mas existem sociedades em que as coisas funcionam de forma diferente?
De uma forma geral, as grandes religiões de massas acabaram sempre por se transformar em estruturas sociais de opressão, hierarquização e subalternização de uns grupos sociais em relação a outros. Se quisermos encontrar formas de religião não opressoras temos de olhar para as pequenas sociedades humanas que vivem da caça e da recolha de produtos não cultivados. Aí não existem igrejas nem «especialistas» em culto religioso (mesmo os xamãs não se dedicam exclusivamente ao culto).
Qual é, então, o papel da culpa nessas sociedades?
A visão do mundo assenta na valorização dos «espíritos». Tudo o que acontece no mundo dos vivos é causado pela acção dos espíritos dos antepassados ou espíritos da própria natureza, que vivem numa espécie de mundo paralelo. O totemismo e o xamanismo, sistemas religiosos característicos das pequenas sociedades que os antropólogos designavam no passado por «primitivas», são na prática formas de lidar com o mundo, de o organizar com sentido e de resolver os problemas da vida quotidiana. Nessas sociedades, quer sejam aborígenes australianos ou caçadores-recolectores do Kalahari ou da Sibéria, quando acontece algo de mal (falta caça, as fontes secam, alguém morre doente, etc.) é preciso encontrar um «culpado» (aquele cujas acções indispuseram os espíritos) e fazê-lo pagar por isso. O preço da «culpa» pode chegar ao ostracismo ou mesmo à morte, mas geralmente a coisa resolve-se com rituais de purificação que envolvem alguma forma de compensação de que todos beneficiam (inclusive o próprio culpado). Um xamã não pode correr o risco de acusar gravemente alguém bem integrado, sob pena de a acusação se virar contra ele. A cosmologia religiosa nestas sociedades proporciona harmonia social e integração com a natureza, o que implica respeito entre as pessoas e também pelos animais e plantas. Um xamã ou alguém que realiza um ritual é sobretudo uma fonte de expressão, não de imposição, de uma visão do mundo.

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