Cuidar dos outros: a única missão que nos distingue no fim
Este País poderia ser um exemplo, fácil e decisivo, para outros. Tem a escala, a capacidade e a energia para isso. Pode ter, é certo, governantes um pouco cobardes e acomodados, gestores pacificados e amordaçados pelo dinheiro, mesmo o pouco que ganham, intelectuais dependentes de oferendas, servitudes e avenças. Mas poderia ter uma outra coisa.
E a outra coisa é esta.
Há seguramente tarefas com um impacto público mais decisivo e imediato do que gerir empresas e manipular, por vezes sem grande cuidado, dinheiro dos outros.
Todos sabemos, interiormente, isso. Mas estamos demasiado formatados neste modelo para exigir outra coisa.
Gestores, até de empresas públicas, membros de reguladores que são, na verdade, por vezes apenas formais, comissários políticos das coisas mais diversas, equiparados para efeitos salariais a conselheiros e diplomatas de topo, a gestores disto e daquilo, a libertadores de pátrias diversas, têm retribuições vergonhosamente ajustadas a tarefas e deveres que não desempenham, na sua essência, na sua absoluta inteireza e capacidade.
O que deve ser verdadeiramente pago, de forma especialmente considerada, e não o é, são desempenhos profissionais como os de enfermeiros, de professores -- especialmente os do primeiro ciclo e abaixo --, de pessoas que trabalham e se dedicam a pessoas com limitações e dificuldades diversas, em lares, em instituições diferenciadas, em espaços de fim de linha.
Eu gostaria mesmo de viver num país em que se reduzisse o salário de um membro do conselho de administração de uma empresa municipal para recompensar adicionalmente o de um enfermeiro do SNS ou uma cuidadora de pessoas numa instituição.
Mas o que é que nos leva a aceitar, coletivamente, que um designado, mesmo que seja extraordinário, para qualquer tarefa de escritório, doce, limpa, deva receber de salário, e de recompensa coletiva, o dobro, o triplo, dez vezes mais, de alguém que sofre as mesmas dores daqueles que estão em sofrimento extremo e que são aqueles que, na verdade, queremos esquecer?
Um dia, em que limpar a merda dos outros, daqueles que precisam de alguém que a limpe por si, dos mais desafortunados entre nós, seja tão bem recompensado como aquele que assina papelitos já trabalhados pela hierarquia abaixo, já hipervalidados, num banco ou numa empresa pública, sem risco e sem dor -- isso será, para mim, um dia de glória. Eu, que dou aulas há mais de vinte anos, não pretendo saber o que é cuidar, de forma essencial, de um outro de nós. Será sempre mais.
Sei apenas que há pessoas, desde logo nessa dimensão e dedicação especiais, que devem ser cuidadas e recompensadas. Sei que li muitos livros, escrevi muitas linhas, disse muitas palavras a miúdos e a mais graúdos. Mas isto está tudo mal.
Quando o empregado de cima de um banco ou de uma seguradora, quando o que faz de mais decisivo no seu quotidiano é receber um papel e endossá-lo a um colega, ganha mais e é socialmente mais apreciado do que quem se enterra na dor e na dificuldade dos outros, e daí sai com um grito coletivo de liberdade e de decência, e até de esperança, devemos saber que há aqui um problema.
E -- para além das dificuldades climáticas, das injustiças de género e das demais lutas da época --, devemos assumir que isto é também absolutamente estrutural. Cuidar dos outros, de forma decisiva e total, pela primeira vez, esse o grande desafio do nosso século, até porque compreende quase todos os outros.
O século XXI deverá vir a ser recordado com o século da empatia e da dedicação ao outro, totais. Se não o fizermos, seremos apenas, como já fomos, iguais: na conformação e na facilidade. Isto é mesmo difícil, mas extraordinariamente belo - e temos todos o dever de o partilhar, de o assumir, de o recompensar.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa