Cuidado, frágil: Veneza, a cidade do vidro
Um lenço enrolado à volta da testa impede o suor de escorrer pela cara de Angelo abaixo, o mesmo suor que lhe cola a camisola às costas - a cinco metros do forno o calor aquece a cara; onde Angelo Pinzan está, na boca do fogo, é quase insuportável. Na ponta da cana, uma massa de vidro incandescente que o maestro vetraio se prepara para transformar numa das mais clássicas peças do catálogo da vidreira Venini, uma garrafa desenhada pelo finlandês Tapio Wirkkala em 1966. Angelo roda a cana dentro do forno, controlando o tempo com a experiência dos muitos anos necessários para chegar a mestre. O ajudante Davide Chivilo observa de mãos atrás das costas ou nas ancas, mas mal a cana sai do forno inicia-se uma coreografia, quase um bailado pré-industrial: é preciso soprar, rodopiar, esculpir, voltar a levar o vidro ao forno uma e outra vez. Todos os movimentos têm um propósito e parecem cronometrados, até o de sair a correr com a peça para pô-la a arrefecer noutro forno, lentamente, ao longo de horas.
"É um parto, algo mágico", diz o designer Emmanuel Babled. Um parto que aconteceu milhares e milhões de vezes ao longo de centenas de anos nas vidreiras de Murano, um conjunto de ilhas de Veneza onde se concentra a indústria do vidro da cidade, desde o século XIII. Mas enquanto há cem anos cerca de 20 mil trabalhavam nestas fábricas e oficinas, hoje são pouco mais de 600. Os fornos vão-se apagando para dar lugar a habitação e turismo e o famoso vidro de Murano é obrigado a competir com imitações vindas do Oriente até nas lojas de lembranças de Veneza.
A crise que arrasou centros importantes de vidro por toda a Europa, como a Marinha Grande, também se faz sentir aqui, nota Uta M. Klotz, editora da revista alemã Neues Glas, especializada em vidro. É neste panorama que surge a primeira Semana do Vidro de Veneza (Venice Glass Week), com exposições, conferências, visitas guiadas e oficinas sobre o vidro, e especialmente sobre o de Murano. O objetivo é apoiar e manter uma "tradição com mais de mil anos de história", num momento difícil.
Andar por Veneza por estes dias é encontrar a arte do vidro a cada esquina: das já referidas lojas de lembranças, onda proliferam os exemplares coloridos, algumas vezes de proveniência duvidosa, passando por exposições que contam a história e o lugar do vidro nas artes aplicadas, até ao vidro na arte contemporânea, com as virtudes do material a seduzirem estrelas como Ai Weiwei ou Bob Wilson. É até possível encontrar uma ementa inspirada nas transparências do vidro, idealizada pelo chef do restaurante do hotel Londra Palace. E como qualquer iniciativa não passa sem uma corrida, a Venice Glass Week adotou também uma prova noturna chamada "Bocca del Fuoco", que no sábado à noite passou por seis fundições e pelas ruas de Murano.
Por onde começar então uma visita à cidade do vidro? Pelos fornos, claro, pelo milagre da areia transformada em vidro nas fornalhas de Murano. A fábrica da Venini é apenas uma delas e muitas estão abertas ao público. É lá que nos encontramos com Emmanuel Babled, o designer francês que no ano passado se mudou para Lisboa mas continua a viver com um pé em Veneza, para trabalhar com o vidro. Um dos seus últimos trabalhos, a jarra Pyros, da qual fará menos de uma centena de exemplares, é um trabalho para uma equipa de sete homens e Babled está sempre com os vidreiros quando as peças nascem. "Nunca conseguimos controlar o vidro, podemos apenas tentar encaminhá-lo na direção que queremos e essa é a beleza do processo. É sempre um parto, um nascimento e há uma urgência na reação: é agora ou nunca." Para um designer, diz Babled, o desafio é usar a tradição e o conhecimento dos artistas do vidro e tentar alargar e ultrapassar as fronteiras do que é possível fazer com aquele material.
Da tradição à modernidade
Para fazer essa viagem da tradição à modernidade é preciso apanhar o barco, o vaporetto, para dar um pulo a outra das mais de cem ilhas que ocupam a Laguna di Venezia: na pequena San Giorgio Maggiore, com vista para o palácio ducal, mas separada da Praça de São Marcos e dos milhares e milhares de turistas por um largo braço de água, há um museu e um centro de estudos dedicados ao vidro. A ilha tem o ambiente mais calmo adequado a este tipo de empreendimento - cedida pelo estado italiano à Fundação Giorgio Cini, tem-se destacado como centro de artes, especialmente do vidro.
No Studio del Vetro, patrocinado também pela fundação suíça Pentagram Stiftung, Luca Massimo Barbero dirige o trabalho de salvar os catálogos e desenhos das vidreiras histórias de Murano, das que ainda existem e das que foram fechando. São desenhos que andaram pelo chão das fábricas, para que mestres e aprendizes pudessem ver e reproduzir o objeto que alguém tinha idealizado - papéis sujos e velhos, que encontraram um caminho até à moderna biblioteca, construída num mosteiro beneditino, com as antigas celas dos monges a funcionarem hoje como arquivos e salas de estudo. E há ainda fotografias, milhares delas. "Muitas vezes, as fotografias são a única coisa que resta, porque as peças perderam-se. Mas quando as famílias de Murano começaram a perceber o trabalho que estamos a fazer começaram a trazer-nos o que tinham", conta Barbero.
Um dos objetivos do arquivo é documentar "a ligação entre o designer e o artista do vidro, a tradução da ideia, a ligação de duas mentes" - uma parte da história de Murano que começa já no século XX, quando há um renascimento, graças a pioneiros como Vittorio Zecchin, explica Barbero. Até ao século passado, os mestres vidreiros reproduziam de memória a tradição, as formas que viam os pais esculpir, que tinham aprendido com os avós, já que a profissão e os segredos passavam de geração em geração. É Zecchin, o filho de um vidreiro que sai da ilha para estudar na Academia de Belas-Artes de Veneza, que é apontado como o responsável por trazer o vidro de Murano para a modernidade.
Uma retrospectiva do seu trabalho nos anos 20 do século passado pode ser vista noutra parte da mesma ilha, no Le Stanze del Vetro, numa exposição dedicada à produção de Zecchin como diretor artístico da vidreira Cappellin e Venini - a inauguração da mostra serviu para lançar a Semana do Vidro, mas ficará em exibição até janeiro. Mais de 250 peças mostram a contribuição de Zecchin para dar ao vidro um lugar de destaque nas artes, recuperando linhas e proporções clássicas inspiradas pelas peças dos quadros do Renascimento e formas essenciais.
À porta do Le Stanze del Vetro é ainda possível ver uma obra da artista visual californiana Pae White, encomendada pela organização a tempo da Bienal de Veneza e para ocupar aquele lugar durante três anos: "Qwalala" é uma parede de vidro transparente e colorido, que serpenteia no terreno como as curvas de um rio jovem. Os tijolos são de vidro, feitos à mão, de forma artesanal, embora a sua disposição tenha depois sido definida por um algoritmo programado por White - tradição e modernidade.
Ai Weiwei no Glasstress
Outro ponto de paragem obrigatório no roteiro do vidro em Veneza - e o último deste pequeno roteiro - é o Palazzo Cavalli-Franchetti, a casa do Glasstress, um evento em que artistas, arquitetos, designers e até músicos (como Pharrel Williams) são convidados a expressarem as suas ideias através de um meio: sim, o vidro. Desde 2009 que o Glasstress é um dos eventos laterais da Bienal de Artes Plásticas e ao longo dos anos quase 200 artistas aceitaram o desafio de mostrar que o vidro é um material contemporâneo. Uma das estreias em 2017 foi a do artista plástico chinês Ai Weiwei: é dele o dedo em riste, o do meio, na escultura de vidro Up Yours, usado nos materiais de promoção da exposição, mas há ainda um enorme candelabro com pássaros, câmaras de videovigilância e mais dedos em riste, a ocupar uma das salas do palácio. "Sou um artista contemporâneo, mas estou sempre a aprender e a trabalhar com a tradição", disse Weiwei quando visitou as fundições de Murano, citado no catálogo da exposição. "Acho que a tradição é como um oceano", concluiu. E se for, Veneza é a cidade de vidro no meio.
A jornalista viajou a convite da Venice Glass Week